Políticas culturais para imaginar e construir futuros
- Aline Portilho
- 26 de jun. de 2020
- 5 min de leitura
Por Aline Portilho

Há pouco mais de um ano, fui convidada para falar na conferência municipal de Cultura de São João da Barra. Na mesma época, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado estava finalizando seu último livro, Amanhã vai ser maior (Editora Planeta do Brasil, 2019). Eu acompanhava o processo avidamente pelo Twitter, rede social em que a autora compartilhava as inquietações que depois estariam desenvolvidas no livro. Ela comentava os acontecimentos políticos recentes do país, mas o que mais me chamava atenção era sua preocupação em apontar a necessidade de construir alternativas para os tempos sombrios em que estávamos imersos (e ainda estamos). Aquela discussão toda me inquietava também e, silenciosamente, ia tecendo um diálogo com a autora cruzando suas provocações com reflexões sobre o lugar das políticas culturais naquele processo. Assim, ao ser convidada para falar com agentes culturais em uma conferência, não tive dúvidas quanto ao tema. Precisava falar sobre algo que acredito muito e venho tentando fazer reverberar nos espaços em que encontro oportunidade: sobre o papel das políticas culturais na construção de futuros, maiores e melhores, ao criar as condições de possibilidade para que artistas e fazedores de cultura articulem imaginários e representações que desafiam e concorrem com o cenário presente. O título da minha palestra acabou ficando “Sobre o amor em tempos de chumbo: panorama das políticas culturais para um presente urgente”. No argumento, o “amor” era nossa capacidade de colocar oposição ao “ódio”, que virou moeda corrente na política recente. O "panorama" serviria para mostrar como as políticas culturais podem ter um papel central na construção, a partir desse “presente urgente”, de um futuro que fosse necessariamente melhor. Meu foco era, e continua, preciso: se não tivermos capacidade de imaginar um futuro melhor, ele simplesmente não existirá, e as políticas culturais são terreno fértil para possibilitar a construção destas invenções de futuro.
O cenário das políticas culturais no Brasil, em tempos recentes, não tem sido muito animador. Eleito pelos atuais representantes no governo federal como inimigo central para combate em sua guerra particular, o setor cultural segue sem políticas expressivas, sem condução e vendo suas principais instituições da esfera federal sendo sucateadas. Isso sem dúvida reverbera nas localidades, diminuindo o ânimo para o trabalho, mas minha aposta era inspirar parceiras e parceiros de trabalho cultural a seguir buscando alternativas e colocando a Cultura no centro de ação positiva para sairmos dessa o quanto antes. (Quixotesca, confesso, mas eu não seria uma trabalhadora da Cultura se não me guiasse um pouco por ideias aparentemente irreais e sonhadoras).
Em uma definição inspirada na vasta obra do autor Nestor Garcia Canclini, as políticas culturais são normas e procedimentos que organizam a intervenção do Estado, de instituições e de grupos no campo da Cultura. Numa releitura da definição de Canclini, Leonardo Figueiredo Costa, no livro Política Cultural: conceito, trajetórias e reflexões (EDUFBA, 2019), propõe que elas são “um modo de intervenção, através de formulações ou propostas que deve reunir diversos atores com o objetivo de promover mudanças na sociedade por meio da Cultura.” E desta forma, eu acrescento, se tornam espaço de concorrência pelo que, no campo da Cultura, deve ser fomentado, preservado, valorizado, enfim, objeto de investimento de recursos financeiros, materiais ou humanos. É precisamente nesta concorrência que surgem as possibilidades de construir novas imaginações que permitam expandir os horizontes de nossa sociedade.
Como as políticas culturais podem se tornar espaço de construção de alternativas a este presente que necessita de ação urgente? Elas têm o poder de viabilizar o invento e a criatividade. Portanto, podem colaborar para a construção de sociedades mais justas quando direcionadas para promover as condições de possibilidade para artistas, criadores, brincantes e fazedores imaginarem e inventarem caminhos melhores para nossa existência coletiva. Esse potencial é exercitado quando as políticas culturais valorizam as diversidades dos modos de existir das populações que elas afetam. Ou, quando são capazes de promover o respeito e a preservação das diversas heranças culturais que compõem essas sociedades (no nosso caso, especialmente as heranças indígenas e africanas, que foram vítimas de violências diversas, resultando no silenciamento de suas contribuições nos retratos oficiais, ainda que sigam existindo pujantes e potentes no nosso cenário cultural, que é muito maior que sua oficialidade). Os Pontos de Cultura e os Pontos de Memória são exemplos recentes e representativos de como as políticas culturais podem exercer esse papel. Tendo por princípio disponibilizar recursos para que as populações realizem seu trabalho cultural e de memória, os programas possibilitam inverter a lógica na produção de símbolos e imaginários, passando o governo a ser fomentador destas representações.
As políticas culturais servem, evidentemente, aos agentes culturais, que podem dispor dos instrumentos para o exercício de sua prática. Mas não só. Servem à população, no geral, que pode usufruir os produtos e processos realizados. Ou seja, ao criar possibilidades para o fazer cultural, as políticas culturais devem criar as condições para os criadores realizarem e também para os públicos acessarem esses bens. As políticas culturais devem, portanto, ser objeto de preocupação de toda a população. Sua formulação não deve estar restrita aos agentes culturais, deve ser apropriada e disputada por todos os segmentos da população. Ao convidar toda a população a se preocupar com as políticas culturais, mostramos que elas podem ter um caráter plural e democrático.
As políticas culturais se tornam capazes de produzir os futuros maiores e melhores que tanto almejamos quando se apresentam como espaço para a resistência à aniquilação simbólica e material das diversas formas de existir. Entender a Diversidade como potência e promover a cultura de respeito pelas diferenças, valorizar as heranças africana e indígena, promover o respeito pelas diversas maneiras de existir são pontos fundamentais para a construção de políticas culturais transformadoras. Outro aspecto intimamente ligado a esses é a promoção da vida em seus múltiplos aspectos, valorizando produções simbólicas diversas e limitando visões de mundo que pregam a aniquilação do outro ou tentam impedir suas existências. Mas essa não é uma condição essencial das políticas culturais. Depende de escolha e posicionamento diante do mundo por parte daqueles que as conduzem.

Ao final da palestra, uma artista que estava na plateia me procurou para agradecer pelo que falei. Disse que foi importante para ela ouvir sobre respeito à diversidade naquele dia e lugar. Eu fiquei realizada por ter tocado uma pessoa tão importante com umas breves palavras e senti que tinha cumprido meu papel. As provocações levantadas por Rosana Pinheiro-Machado seguem reverberando novas reflexões. Fico com sua proposta como eixo central de ação: “não existe resistência sem criatividade e, por isso, imaginar um novo futuro é uma tarefa da qual não podemos abrir mão.” Trata-se exatamente disto: não temos possibilidade de abrir mão de produzir um amanhã maior e melhor. E só vamos construir esse futuro coletivamente. Por isso, ter ouvido a artista ao final da palestra tanto me tocou. Precisamos nos afetar e coletivizar pelos futuros possíveis e melhores. Disso depende nossa existência em suas dimensões simbólicas, políticas e materiais também.
tenho uma proposta para desenvolvimento, por vislumbrar governos nada envolvidos com bem cultural artístico: que os equipamentos culturais de espetáculos e fruição sob gerenciamento do poder público municipal (anfiteatros, palcos, escolas de música, literatura etc.), sejam repassados por editais à administração de grupos de artistas, inclusive também, todo maquinário logística pessoal agente públicos das secretarias municipais de cultura, se as há, ou o que as valha. Principalmente, o que foi adquirido e contratado com recursos da lei de emergência cultural aldir blanc.