Cultura, palavra coletiva
- Culturália
- 1 de out. de 2020
- 5 min de leitura

Por Aline Portilho
Em um exercício de imaginação, alívio para os momentos de claustrofobia provocados pelo necessário isolamento social que vivemos, me vejo sentada na areia à beira do mar. A areia pode ser mais fina, como em algumas praias de São Francisco de Itabapoana, ou mais grossa, como em Grussaí, em São João da Barra. Na minha frente, um mar de água escura e imprevisível - eventualmente, ainda que raro, esverdeada - e que pode estar gentil ou bravo. Completando a composição, um vento constante e algum rio que entra no mar.
Eu não sei se vocês sabem, mas os ventos daqui são diferentes de qualquer lugar do mundo (ok, não conheço tanto mundo assim, mas são diferentes). As pessoas daqui sabem reconhecer, de acordo com o vento, se o mar vai estar gentil ou bravo. Acho isso um encantamento que não aprendi, ainda. Sou estrangeira em terras nacionais. Ao deixar o Rio, não me tornei campista (ainda não sei ir à praia no dia correto de mar calmo só pelo vento) e deixei um pouco de ser carioca (o sotaque já não chia como antes). Estar no entrelugar não me incomoda. Tento vislumbrar com encantamento o que o Norte fluminense oferece e habitar esse deslocamento, nem sempre harmonioso, com alguma poesia. E o resultado tem sido positivo, a maior parte das vezes.
Essa busca por habitar com poesia o Norte fluminense me revela diversos encantos deste lugar. A divisão política que unifica territórios tão múltiplos que vão de Macaé a São Francisco do Itabapoana, pelo litoral, passando por Conceição de Macabu, Cardoso Moreira e São Fidélis, no interior, junta coisas muito distintas. Quando vemos o que as pessoas podem fazer ao assumir a unificação territorial como uma realidade a incorporar, a representação ganha novos sentidos. É na ação das pessoas que encontramos potência.
Em 2020, a mobilização dos agentes culturais neste território ganhou muito movimento: A Lei Aldir Blanc (já falamos sobre ela aqui e também aqui), a construção da Pré-conferência Popular de Cultura e do Fórum Regional de Cultura do Norte fluminense, que teve sua primeira diretoria eleita dia 29 de setembro de 2020, são alguns exemplos. Coletivamente, os agentes culturais da região construíram esses espaços de articulação e vivências e isso demonstra aquela potência citada antes. É verdade que poderia ter mais gente envolvida e que alguns municípios ainda precisam de mais articulação, mas sem dúvida as diversas pessoas que se mobilizaram para erguer estas estruturas de ação política e cultural na região já estão fazendo a diferença. O principal legado que fica é produto do caráter coletivo de suas ações.
A Pré-conferência Popular de Cultura do Norte fluminense surgiu da articulação entre agentes culturais da região e outros, de todo o país. Estes agentes estão mobilizados para a construção de um movimento nacional, a Conferência Popular de Cultura, que se propõe a ser "um levante da sociedade civil diante dos ataques e desmonte da política cultural no Brasil" para garantir o "reposicionamento do papel estratégico da cultura como política pública e direito social de todos os brasileiros e brasileiras". Não há norma ou lei que obrigue a realização destas conferências. Elas só existem porque os agentes culturais perceberam que é preciso ocupar esse espaço, articular, organizar. É a potência do agir em conjunto, do pensar e formular as propostas para impulsionar as políticas culturais que move estas pessoas. É um movimento parecido com o que produziu a Lei Aldir Blanc, que só se tornou real porque o setor da Cultura nunca deixou de se organizar. Nunca deixou de se compreender como parte importante da sociedade civil, que tem como princípio fazer as ações de governo caminharem para o bem comum, ou seja, coletivo. No Norte fluminense, decorrente desse movimento, penso, as estruturas de ação política estavam consolidadas para a construção do Fórum Regional de Cultura, parte da estrutura de gestão cultural do estado do Rio de Janeiro que conta com diretoria formalizada. Do espontâneo ao formal, um caminho de legitimidade foi pavimentado em um processo coletivo e colaborativo.
Das muitas maneiras de fazer cultura que tenho encontrado nesse processo de habitar o Norte fluminense, quero fazer um destaque especial aos coletivos. Coletivos, entrelaces culturais: gente que se junta para criar e agir no mundo. Gente que se organiza de forma colaborativa, quebra hierarquias tradicionais para formar agrupamentos dispostos a agir de maneira independente em relação às estruturas econômicas e políticas mais tradicionais. Os coletivos se propõem a fazer algo que está faltando na cena cultural de seu território e batalham para articular os meios para aquela ação acontecer. Muitas vezes, articular os meios equivale a demandar, exigir que o poder público atenda às necessidades que apresentam. Assim, são independentes de determinadas estruturas econômicas e de poder, mas não isolados: interagem com essas estruturas para fazerem a política realizar seu papel principal, que é criar os meios para fazer acontecer as ações em benefício do comum.
Aqui na região, temos muitos coletivos com essas características, que pintam com cores intensas a cena cultural do Norte fluminense. Os de Campos dos Goytacazes já foram objeto de estudos de Jonas Defante Terra, Anna Franthesca de Souza Ribeiro Santos e Wellington Cordeiro (publicado em 2017 no texto Coletivos Culturais de Campos dos Goytacazes (RJ). Com eles aprendemos que
“tendo em vista o surgimento de uma quantidade significativa de novos coletivos culturais e o fortalecimento dos antigos, podemos entender que a máxima popular ‘a união faz a força’, em Campos pode ser adaptada para ‘a união faz Cultura’. Os produtores entenderam que num município em que não se tem um investimento público nem privado direcionado para a cultura, somente com a soma de esforços dos agentes é que se conseguiria uma produção desejada, quantitativamente e qualitativamente falando.”
Pelas redes sociais, podemos ter uma ideia de seus propósitos, suas motivações, seus encantamentos. O Coletivo Resistência Goytacá, que organiza o Dia do Rock Goitacá, se apresenta na rede social Instagram como “um grupo de empreendedores culturais que trabalham em prol da arte e dos artistas de Campos”. O Circuito Centro Vivo é um “coletivo que tem como objetivo incentivar a ocupação do centro urbano com arte e cultura”. As POC, que ocupam com poesia a cidade, se definem como “coletivo construtor de espaços de empoderamento e discussão LGBTQ+ em Campos dos Goytacazes para pensar, ouvir e criar resistência, nos permitindo sentir.” Tem também o Coletivo Artístico Saravá, “laboratório de estudos sobre performances, teatro, educação e relações étnicos raciais”, que se apresentou no Culturália com esse texto. Em Macaé, o Rap da Ponte é “um movimento coletivo que fomenta a Cultura Urbana com arte, entretenimento e solidariedade, agindo como ferramenta de transformação social”. São muitos os temas, as pessoas, os objetivos. Ficamos aqui apenas com alguns exemplos para refletir sobre essa diversidade encantadora e aguardando com ansiedade pelo dia em que poderemos encontrar esses coletivos presencialmente em suas ações.
Coletivo, mobilização, ocupação da cidade são termos que surgem muito nas definições dos coletivos. Retomando a imagem do início, entre as paisagens compostas por ventos, praias de areia grossa e fina, sossegadas ou agitadas, rios que atravessam campos e avançam para o mar, nada disso seria completo não fosse a ação dos sujeitos que esta terra habitam, que faz florescer a cultura do Norte fluminense. Para pensar e produzir as políticas culturais entre estruturas formais e poderes estabelecidos, podemos nos inspirar no saber daqueles que sabem como vai estar o mar pelo soprar do vento. Ouvir o soprar dos rumores que produzem os coletivos culturais pode nos apontar um lugar melhor e mais interessante para as políticas culturais da região. Lá, certamente, vamos privilegiar a colaboração e o encontro. Vamos exercitando isso por aqui também, no Culturália, valorizando e agradecendo cada colaboração que recebemos sem a qual este blog sequer existiria. Esse texto, por exemplo, contou com a ajuda fundamental da Mariana Fagundes, do Coletivo Cultural Resistência Goytacá, que deu as dicas dos coletivos da região. Somos gratos por seu apoio, que é tão essencial para nosso trabalho, e seguimos dispostos a colaborar no que for preciso para a resistência cultural no Norte fluminense.
Que labor bonito esse texto pesquisa. Parabéns! Precisamos vislumbrar esta nata de pessoas fazedoras de atividades culturais, no sentido essencial do fazer arteartearte.
Ei, o Dia do Rock. O Luiz. Em uma das celebrações fiz letra em homenagem a ele, uma versão de “Time” Roger Waters, para participar com o Artur Gomes, que foi quem me apresentou a ele lá pelos dias dos AVYADORES DO BRASIL.
Sinto falta desse tipo de coletividade artística aqui em São Fidélis; em que pese a LAB ter movimentado a minha cidade (crio crença cativante que a catraca claudicante combinou cada centímetro), ainda são esparsos os movimentos. Bem, haja pandemônio desaglomerante, decerto e certo, mas do que digo é aquele gostar de fazer junto, sabe.…
Que texto maravilhoso! Lindamente poético e atualíssimo (ainda que recuperando um pouco deste fantástico movimento dos Coletivos). Parabéns pela lucidez estética da escrita e o importante registro.