Sobre aquilo que nos transcende: o sagrado, as diferenças, o tempo
- Culturália
- 4 de dez. de 2020
- 3 min de leitura
Por Aline Portilho

Há dias que são especialmente difíceis. Olho para os lados e nada parece fazer sentido: a opção de algumas pessoas por tendências políticas baseadas no ódio e no desrespeito às diferenças; o descrédito coletivo em ideais baseados em igualdade e colaboração; a incompetência governando setores como cultura, educação ou saúde, estratégicos para uma vida plena em sociedade.
Quando me propus o desafio de escrever para ser lida e publicar esse blog, tinha em mente inspirar as pessoas para o bem viver, para olhar o melhor de si, para encontrar na cultura um meio de expressar e realizar seus anseios coletivamente. Começar um texto levantando questões como essas é muito difícil, pois parece que estou traindo minhas convicções iniciais.
Mas, em meio a esse humor pessimista que já me acompanhava há alguns dias e do qual não sabia como sair, me dei conta de que hoje, 4 de dezembro, é dia de Santa Bárbara. Foi o estalo que precisava para colocar algumas coisas em perspectiva.

Não sou religiosa, mas Santa Bárbara provoca em mim um sentimento que não sei bem explicar. Uma espécie de alegria segura e confiante. É com ela que me pego nas viagens de avião que tanto me apavoram. Também é ela que me vem à mente quando, em profunda paz diante da natureza estonteante, não tenho mais o que pedir e só consigo agradecer.
Nestes momentos, faço dos versos de Roque Ferreira cantados por Maria Bethânia um tipo de reza que me conforta. E aí me ponho a cantarolar mentalmente “minha Santa Bárbara / senhora de mim / luz que alumia / por misericórdia alumia / nos livre das tempestades desse mundo / dos raios dessa vida nos proteja / dona das rosas vermelhas / Soberana / Divina / que assim seja”. Experimento assim uma conexão profunda com algo que é maior que eu, que me escapa aos sentidos traduzíveis em palavras e à explicação racional.
Mas, como eu ia dizendo, não sou religiosa, o que não significa que não tenha lá minhas conexões com o sagrado. No final do ano, essas conexões ficam mais evidentes, sem dúvidas. Coletivamente somos instados a evidenciá-las, frequentemente de maneira muito protocolar. Se é uma época marcadamente cristã, suas manifestações, porém, muitas vezes se misturam às expressões africanas e indígenas. Este é um evidente território de conflitos, especialmente porque elementos africanos e indígenas são sistematicamente apagados e criminalizados em uma sociedade como a nossa, em que o racismo é estrutural.
Para os que vivenciam com sinceridade esse momento, é uma bela oportunidade de conexão com o sagrado. Para os que valorizam as diferenças culturais, é um excelente momento de colocar em foco aquilo que nos conecta em detrimento daquilo que nos divide. Para os que têm como missão tornar este um mundo melhor, é uma ocasião excepcional para praticar o que realmente importa: congraçar com os que compartilham conosco a experiência de existir nesse exato tempo.
E onde foram parar as inquietações do início do texto? Estão exatamente no mesmo lugar, apontando o que deve ser transformado para melhor vivermos em sociedade. Conectar-se com o sagrado, penso, não deve servir para apagar os conflitos e as coisas erradas que experimentamos. Servem, assim como o tempo, para colocá-las em perspectiva. O tempo é mesmo fascinante, “um dos deuses mais lindos”. Tempo que passa, tempo que se desenvolve em ciclos, tempo que não se repete da mesma forma, tempo em que pessoas agem e assim moldam o mundo.
É no tempo que fortalecemos os vínculos que nos alimentam. O tempo transcende e é olhando para ele que podemos desenvolver a serenidade para saber que tudo se transforma. Enquanto isso, trabalhamos. No meu caso, em conexão com Santa Bárbara.
Como é nosso último texto de 2020, desejamos que o final de ano seja, contrariando todo o resto, leve e sereno. Que possamos nos conectar com o que nos transcende e por isso mesmo nos humaniza. E que nos sobrem forças para transformar o mundo até que não falte pão, abrigo e carinho a todas as pessoas.
Eu amei <3