A emergência da Cultura
- Aline Portilho
- 5 de jun. de 2020
- 4 min de leitura
Lei que garante auxílio a profissionais da Cultura ganhou o nome de Aldir Blanc e foi aprovada exatamente um mês após sua morte por Covid-19
Por Aline Portilho
Desde o final de 2019, uma situação nova e assustadora em muitos sentidos alterou significativamente a vida social. Um vírus letal se espalhou rapidamente por praticamente todo o mundo. Sem tratamento conhecido ou vacina. Medo, apreensão e um pouco de esperança de que as coisas possam melhorar em algum dia - “quando tudo isso passar” - tem nos acompanhado desde então. A recomendação baseada em evidências científicas é redobrar cuidados com higienização, permanecer distanciados e não produzir aglomerações de pessoas para evitar a contaminação em massa e a sobrecarga do sistema de saúde, já precarizado.
Isolar e não aglomerar. Descritas assim, tão simplesmente, não revelam as camadas de complexidade em que estão envolvidas. Em um país onde a desigualdade social é imperativo duro e implacável da realidade, como o Brasil, isolar, não aglomerar e permanecer mantendo suas condições materiais de vida tornou-se um desafio. Para garantir a todos o direito de se cuidar, seriam necessárias ações do governo que apoiassem os que mais necessitam neste momento de dificuldade. Se o país é desigual, sabemos que as pessoas acessam desigualmente os recursos que lhes são necessários para o seu sustento. Deveria haver Estado que amparasse a todos nessa situação.
O setor da Cultura foi um dos primeiros a deixar de funcionar. Aglomerar e aproximar é o princípio de nossa vida cultural, então, não teria jeito: parar as atividades era vital. Teatros e cinemas fechados, circos e espaços culturais interditados, shows e festejos adiados ou cancelados. Mas, se a vida presencial deu um tempo, muito desse movimento se deslocou para as redes sociais. Um festival de lives encheu as casas de música, contação de histórias, peças teatrais. E muito se ouviu dizer que vivenciar o distanciamento social, para aqueles que assim podem, sem a Cultura seria impossível. Então, estamos lá apoiando, movimentando e tornando um pouco menos difícil a vida das pessoas.
Mas, é preciso cuidar do sustento. A Cultura é feita por pessoas, trabalhadoras e trabalhadores que cortam, pintam, preparam luz, seguram cabos, instalam peças, recitam, interpretam, cantam, dançam, modelam… Mesmo sem poder aglomerar e tendo que se isolar, estas pessoas precisam existir e se sustentar. Como garantir que essas pessoas tenham direito a sobreviver, sem que uma coisa exclua a outra?
Três bilhões de reais é o valor acumulado no Fundo Nacional de Cultura, um fundo público constituído exclusivamente para financiar ações culturais pela Lei 8313/91, a Lei Federal de Incentivo à Cultura, ou Lei Rouanet, como ficou mais conhecida. Com este valor, seria possível financiar projetos culturais, Pontos De Cultura, Pontos de Memória… Mas, não foi utilizado desde o ano passado e hoje, no momento excepcional em que vivemos, pode ser a saída para garantir o sustento das trabalhadoras e trabalhadores da Cultura. Ou seja, o recurso existe e neste momento precisa ser utilizado.
Para isso acontecer, seria necessário construir instrumentos de política pública que fizessem os recursos chegarem a quem mais precisa dele. E foi o que fizeram os articuladores da Lei de Emergência Cultural, ou Lei Aldir Blanc, como foi batizada em homenagem ao artista vitimado pela Covid-19. Fizeram um exercício de política: ouviram setores diversos da Cultura no país, calcularam e projetaram as possibilidades de fazer os recursos efetivamente chegarem a quem precisa. Articularam com partidos políticos e garantiram os votos necessários para aprovar a medida. Muitas webconferências aconteceram e aproximaram quem vive da Cultura da pauta proposta. E o apoio foi vigoroso. Na Câmara dos Deputados, foi aprovada na tarde de 26 de maio. No Senado, em 4 de junho de 2020, exatamente um mês após o falecimento de Aldir Blanc. Artista de máxima relevância no cenário nacional, sua morte pode ter sido ignorada por alguns, mas o destino tratou de garantir a ele homenagens maiores.
Metade dos recursos será destinada aos municípios preferencialmente por meio de repasses aos fundos municipais de Cultura. Como nossos municípios estão se preparando para receber e operar os recursos, fazendo-os chegar a quem realmente precisa? É urgente saber como os responsáveis pela gestão cultural das cidades estão se organizando para operar estes recursos. Em Campos dos Goytacazes, diante da desolação causada pelo momento, ao menos duas iniciativas de solidariedade foram articuladas pela sociedade civil para ajudar trabalhadores da Cultura: uma vaquinha virtual para apoiar aqueles que tiveram seus contratos suspensos pela prefeitura e a

ação Artista Solidário, que mobilizou doações de alimentos e itens de higiene pessoal para músicos e outros trabalhadores da cultura da cidade.
A solidariedade e a mobilização social foram importantes para atacar com urgência o problema. Parcela da sociedade campista se solidarizou e mobilizou para apoiar, a partir de seus próprios meios, os fazedores da cultura que necessitavam. Agora é o momento do poder público municipal assumir seu papel viabilizando que a Lei Aldir Blanc cumpra seu papel.
A elaboração desta lei produziu efeitos e trouxe ensinamentos. Ela é emergencial por sua natureza: a pandemia está existindo agora, e as trabalhadoras e trabalhadores da Cultura necessitam de suporte imediatamente. Apesar da urgência, o trabalho foi feito de maneira organizada, apontando meios e recursos possíveis para sua execução. É por isso um exercício competente de elaboração de política cultural. Ao mesmo tempo, está sendo um processo de mobilização do setor Cultural sem precedentes nos anos mais recentes. Este momento revelou a emergência da Cultura nos dois sentidos da palavra: ela é urgente e emergiu mostrando seu poder de fazer a sociedade agir. Neste momento, além de continuar mobilizados para que o projeto seja sancionado pelo presidente da República rapidamente, é urgente a organização dos gestores culturais dos municípios para reproduzir nas localidades a organização e mobilização alcançadas pela articulação nacional.
Talvez, um dos seus legados para o futuro seja justamente essa mobilização. Porque a Cultura é feita de gentes, muitas e diversas, que vivem e se alimentam, sonham e realizam. Com urgências e emergências. Que votam e se organizam. É preciso olhar e cuidar da Cultura.
Inauguramos com este post a seção Opinião. Aqui você encontrará os textos produzidos pelos fazedores de Culturália em que expressaremos nossas reflexões sobre os mais diversos temas da cultura.
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