'O teatro me fez enxergar melhor em que mundo vivo'
- Luiz Neto
- 3 de jul. de 2020
- 10 min de leitura

Lucia Talabi é daquelas pessoas que você escuta sem se cansar. Atriz, arte-educadora, gestora pública, militante do movimento negro, muitas são as funções que ela exerce com qualidade e entusiasmo, não só no Norte Fluminense. Nesta entrevista ao Culturália, ela conta a sua trajetória nos palcos, iniciada nos primeiros anos da década de 1980, quando cursou Letras na Faculdade de Filosofia de Campos (Fafic), hoje Centro Universitário Fluminense (Uniflu). Depois, Lucia foi para a Bahia, onde "a mulher negra tomou consciência em mim", segundo afirma a artista. De lá, foi para o Rio de Janeiro e se formou em Teatro na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL). A conjuntura do início da década de 1990 a fez voltar para Campos, onde "apenas um tempo" se tornou algo definitivo. Faz arte por amor e da educação instrumento para transformar. Por pouco mais de dois anos, entre 2017 e o início de 2019, chefiou a Superintendência da Igualdade Racial (Supir) e agora atua na formação continuada de professores da rede municipal campista, além de compor a roda de leitura 'Para Ler as Meninas' e o grupo de teatro 'Erosão'. Lucia é assim, não para. E inspira por onde passa.
Culturália: Quando você decidiu ser atriz?
Lucia Talabi: A decisão veio quando eu já estava me tornando uma adulta, mas o start veio quando eu era muito pequena. Houve muita relutância para a aceitação disso na família. Eu queria fazer o curso de Teatro, mas em Campos não havia esse curso. Eu fui fazer Letras na Fafic, mas lá havia um grupo de Teatro, havia eventos da faculdade. E comecei a fazer teatro assim, com meus vinte e poucos anos, no início dos anos de 1980. Depois de me formar, eu passei um tempo na Bahia, fazendo teatro, dança. Em seguida, fui para o Rio e ingressei na CAL. Me formei em 1989, na turma que nós denominamos Turma do Bicho, pois montamos 'Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come' (escrita por Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar), com direção do Amir Haddad, que acabou ganhando o Prêmio Shell de direção nesse ano, com esse espetáculo.

C.: Qual foi a maior dificuldade que você encontrou durante essa trajetória?
L.T.: A dificuldade vem do próprio mercado de trabalho, da forma com que o brasileiro vê o fazer artístico, além de nossa política cultural, a qual é uma grande dificuldade. Enquanto uma mulher negra, há a dificuldade de encontrar papéis que representasse uma vida diversificada, fora desse estigma de ter a negra sempre em papéis subalternos e representando sempre uma classe inferior, sempre como escrava em novela histórica. Só agora que o mercado começa a abrir um pouco, depois da luta dos movimentos. Assim que me formei, eu tive uma abertura bastante grande, tanto na parte de atuação, quanto como produtora. Só que, em 1990, Fernando Collor de Mello assume a presidência da república e fecha todos os aparelhos culturais. Com isso, eu me vi completamente podada de fazer alguma coisa na área e volto para Campos, pois eu já tinha a minha primeira filha. Em Campos eu comecei a trabalhar na área de educação, produção e atuação. Continuei vivendo de arte, em vários segmentos.
C.: Como e quando se deu o seu ingresso na luta política?
L.T.: Eu fiz parte do movimento estudantil no início da faculdade. Nós fundamos o movimento negro. Recebemos aqui a Lélia Gonzalez (antropóloga, morta em 1994), que nos orientou. Então, um grupo começou a militar na questão racial. O teatro me fez enxergar melhor em que mundo vivo. Traz o autoconhecimento e, com isso, você se localiza no entorno. Também foi uma época em que estávamos brigando pelo fim da ditadura. Então, tudo isso vem à tona, a questão racial, a questão social. Havia também o movimento feminista, apesar de ele ainda não apresentar ainda, na época, a questão do feminismo negro, mas já havia a questão do posicionamento da mulher não mais como subalterna ao patriarcado. Foi aí que nasceu todo o meu posicionamento de militância pelas questões sociais, pelos minorizados, pelos indígenas. Como eu era muito ativa, estive no Projeto Rondon. Então, tive oportunidade de viajar, de conhecer Dom Pedro Casaldáliga (um dos propulsores da Teologia da Libertação no Brasil e atualmente bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso) em um encontro. Essa coisa da teologia da libertação também me trouxe outra visão do que era ser negra. Aí eu fui morar na Bahia, onde a mulher negra tomou consciência em mim. Daí eu não parei mais. Esse contato com a cultura afro, com os terreiros de candomblé, a dança afro, o teatro baiano. Quando eu entrei na CAL, tinha a total consciência da minha questão. Como eu já tinha uma idade avançada, 25 anos, eu só queria me formar e fazer teatro. Eu era a única negra da turma, em uma escola de classe média alta, e consegui passar por ali sem mágoas. Consegui me posicionar em uma turma que respeitou muito o meu trabalho. Até hoje nos comunicamos, nos ajudamos financeiramente, com caixinha, espetáculos. São 31 anos de amizade. Eu consegui levar a eles outra imagem do que é ser negro. Eles eram todos privilegiados, brancos, da Zona Sul do Rio, e começaram a entender que as coisas eram diferentes. Eu ouço deles isto: "Nossa, como você mexeu com nossa cabeça com essa questão de negritude. Você nunca deixou que confundíssemos essa questão racial. Você sempre se posicionou. Muita coisa foi desconstruída em nós desde aquela época". Cheguei a trabalhar como produtora de elencos, trabalhei na TV Manchete, mas nessa virada de 80 para 90, fecha tudo, a Manchete faliu, e vim para Campos dar um tempo. Esse tempo acabou permanente, pois eu vi em Campos um lugar para criar meus filhos com tranquilidade. Saí do Rio com a minha filha prestes a fazer um ano de vida e estava grávida de meu filho, tenho um casal. Aqui eu tinha casa própria, família perto. O Rio, depois da quebradeira, era só bala perdida. Estava casada com um artista plástico, Rafael Sanches, figurinista e cenógrafo, o qual veio comigo. Nessa, eu fui ficando e comecei a trabalhar em escolas, como a Nossa Senhora Auxiliadora, onde fiquei por mais de dez anos.

C.: E como foi essa nova vida em Campos?
L.T.: Na época, eu senti muito a falta de movimentos culturais em Campos, das pessoas engajadas nas questões que envolvem arte e cultura, os aparelho funcionando. Senti falta de museus, teatro, cinema, mas continuei trabalhando, montei espetáculos. Não sei nem se isso é reconhecido, mas eu e meu marido trouxemos para Campos outra visão do fazer teatral, outras linguagens do teatro contemporâneo, outra forma que aqui ainda não tinha. Eu tinha uma boa formação, com a regência do Yan Michalski (um dos fundadores da CAL, morto em 2000). A exigência na CAL era bacana. Então, cheguei muito consciente do fazer teatral, da arte e do teatro. E comecei a dar aula. Muita gente foi meu aluno aqui na cidade. Toda essa criançada que passou pelo Auxiliadora participou de festival de poesia, montagem de peça, contação de história. Eu pude produzir muito dentro dessa escola, onde me descobri arte-educadora. Continuei estudando, fiz pós-graduação em arte-educação e, com isso, ingressei via concurso na Prefeitura de Campos, onde estou até hoje, desde 2003. Paralelamente eu trabalho em outras instituições particulares de ensino. No Auxiliadora, eu jogava em todas as áreas, até na coordenação da área de artes. De lá, fui para a Faculdade de Medicina, coordenar o setor de Cultura da instituição, onde fiquei por oito anos, entre 2006 e 2014.
C.: E esse trabalho no ensino superior?
L.T.: Com um projeto de arte-educação e humanização do ensino médico, eu consegui extinguir o trote vexatório. Era um trote que maculava a imagem da instituição. Havia uma equipe com psicólogos, uma médica ligada à arte, o diretor era flautista, o que me deu abertura para trabalhar com arte e cultura com o intuito de que poderíamos humanizar o ensino médico. Extinguimos o trote vexatório, o qual se tornou solidário. Conseguimos deixar aprovada pelo MEC a cadeira de Humanidades após esse tempo. Foi um legado. A arte foi usada numa forma de transformação, muito contundente. E isso ficou. Mudamos a cultura de violência de uma instituição de ensino médico particular. Muita gente que entrava ali era gente que sequer havia andado de ônibus na vida. Foi muito prazeroso. No trote solidário, eles tinham contato com asilos, orfanatos. Recebemos o Bando de Palhaços, da Unirio. Nós trabalhamos por três ou quatro anos com esse grupo. Havia o seguinte questionamento: "Ué, vamos ser médicos palhaços?" Mas eu falava: "Não, vocês vão aprender a olhar, a tocar, a se ver, a entender como se conhece gente, como se comunica nas linguagens verbal e não verbal, como o palhaço de hospital trabalha, qual a importância do riso. Ele não está para fazer rir, mas para desenvolver empatia e compaixão. O palhaço de hospital não está ali para fazer alguém rir. Ele está para lidar com prazer". Eu tinha um colega que havia ido para Quebec, onde trabalhava com abrigos de idosos. Ele pôde passar isso para os meninos. Nós fazíamos sarau, sessões de cinema, o Medcine, onde discutíamos filmes fora do contexto da cultura de massa. Não era filme de sucesso no cinema. Era filme com qualidade técnica e argumento que relatava uma vida que os alunos precisavam entender.
C.: Como foi a experiência na Supir?
L.T.: Aprendi muito com isso. O prefeito Rafael Diniz estudou no Auxiliadora. Suponho que um dos motivos de ele ter me convidado seja o trabalho que exerci lá. O Auxiliadora era uma escola salesiana e eu levava para lá roda de jongo, coral de música africana, fazia festa junina. Nos festivais de poesia, havia música indígena, música negra. Eu levava a diversidade lá para dentro. Eu aceitei o convite do Diniz com muito medo. Foram dois anos e alguns meses de muito aprendizado. Tem o lado bom e o lado ruim. É muito difícil você estar numa posição de gestão pública, pois você recebe coisas de todos os lados: exigências, aceitações, não aceitações, interferências, flechadas de todos os lados. A nossa cultura política é muito equivocada. A única coisa que eu tinha de fazer ali era promover políticas públicas, como todos os aparelhos públicos. O Brasil não vê isso, não tem esse olhar da inclusão. Esse lado é muito difícil. Se você não tem condição de executar isso, não tem porque estar ali. Eu consegui fazer muita coisa, consegui mudar a cara do lugar. Esta gestão pegou a cidade depredada. Nada estava direito, não havia um aparelho de pé. Estava tudo sucateado. Eu consegui dar uma cara melhor, a partir do que veio para a minha mão. Eu consegui promover cursos. Criei o curso de teatro negro, abrindo portas para os alunos do IFFluminense, alunos de teatro que tinham condições de estagiar. Isso não era comum em Campos. Dei continuidade ao pré-vestibular solidário, reformulando esse projeto, dando recortes racial e econômico a ele. Como pobreza no Brasil tem cor, estávamos abrindo portas para esse público. Conseguimos vários professores formados na Uenf, no IFFluminense, eles foram voluntários. Criamos projetos de música também. Só não tínhamos verba. Eu saí de lá sem preocupação com nota fiscal alguma. O trabalho foi feito todo em parcerias. Depois que eu saí, passei a trabalhar com formação continuada de professores. É muito bom ser arte-educadora, o que me faz continuar trabalhando politicamente, conseguindo lidar diretamente com a transformação que a arte e os conhecimentos culturais trazem.

C.: Fora o seu trabalho formal, na Prefeitura de Campos, a quais projetos você se dedica atualmente?
L.T.: Sou atriz do coletivo 'Erosão', que se formou na Casa Duna, em Atafona. Temos um espetáculo em processo, já fizemos duas experimentações públicas com ele, que é o 'Tempontal' (criação coletiva sob a direção de Fernando Codeço). Fizemos uma em São João da Barra e outra em Atafona. Agora estamos trabalhando online, em ritmo de grupo de estudo, com trabalhos práticos e teóricos. Temos oficinas em que nós mesmos nos promovemos. Estamos esperando a pandemia passar para darmos continuidade ao espetáculo, terminar a montagem dele. É um espetáculo com linguagem bem contemporânea. Trabalhamos com a questão do teatro físico, como novas vertentes das técnicas teatrais.
C.: Quais foram os seus trabalhos mais marcantes?
L.T.: Eu tenho carinho por todos os meus trabalhos. Como eu não pago minhas contas com dinheiro do teatro, pois na verdade eu trabalho para pagar o teatro, eu nunca fiz espetáculo por sobrevivência. Eu tive a possibilidade de fazer as coisas que eu queria. O espetáculo de formatura na CAL, porém, foi marcante. Ele saiu premiado como melhor direção, num Prêmio Shell. Outros que me marcaram foi o 'Auto do Ururau' (de José Sisneiros) — este vencedor de Prêmio Shell na categoria música, com composições de Caíque Botkay e do próprio Sisneiros, em 2006 — e o monólogo 'Memórias da Lua Cheia'. Os dois estiveram em temporada no Teatro Gláucio Gil (em Copacabana, Zona Sul do Rio). Havia espetáculos, como o 'Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come' e o 'Auto do Ururau', nos quais eu tinha de interpretar vários personagens que eram muito bons de fazer. Eu não sou atriz de muitos espetáculos, mas eles foram muito pontuais. Eles sempre buscaram a obra de arte, o não fazer porque precisa ser feito. Outras coisas gostosas de viver foram as passagens como atriz no cinema. Eu fiz um filme que foi a primeira experimentação do ator Jackson Antunes como diretor, um longa chamado 'A Tímida Luz de Vela das Últimas Esperanças' (2012, 75min). Eu e a Cristiane Britto fizemos as duas protagonistas do filme, que era todo sobre essas personagens, Vivi e Antonieta. Eu fui a Antonieta. Nós fomos para Curitiba fazer esse filme, rodamos em alguns festivais, como o Cine Sul, estivemos no Festival de Vitória, no Festival de Montes Claros. Depois, eu fiz 'Chico' (2016, 22min), um curta com os irmãos Carvalho, o qual rodou pelos festivais de Tiradentes, Brasília, ganhou prêmio. Em 2018, fomos indicados como melhor curta e estivemos na Premiação do Cinema Brasileiro. Esses trabalhos marcaram porque foram feitos com prazer e vontade de estar ali pela obra de arte. O 'Tempontal' tem sido assim, num trabalho colaborativo.

C.: Em que sentido?
L.T.: Conseguimos espaço, transporte para os artistas. Se lá na frente isso der retorno, maravilha. Apesar disso, eu considero, sim, esse trabalho profissional. O mercado não te dá condições, não temos políticas culturais para amparar o trabalho artístico, mas nós somos profissionais que bancam aquilo que fazem. Na medida do possível, conseguimos pelo menos repor aquilo que gastamos, mas não somos amadores. Amamos o que fazemos, mas não somos amadores no sentido de ser desprovidos de responsabilidade. Existe uma responsabilidade bem grande em relação a tudo que fizemos, a tudo que estamos gastando. E assim, também, é o 'Para Ler as Meninas'. Nós investimos nisso, compramos livros, e o que entra é para pagar o que gastamos. O nosso nome profissional, porém, está indo. Não sabemos quando teremos retorno financeiro, mas o que tem retornado é bem prazeroso.
C.: Algum projeto a mais?
L.T.: Sim. Sou uma das criadoras e produtoras da Mostra Presente. Essa mostra é um importante evento que criamos para dar visibilidade às questões de direitos humanos. Estamos na segunda edição, a qual será online, entre os dias 23 e 26 deste mês de julho. A primeira foi presencial, em Campos, tendo como temática a pauta LGBTQIA+. Firmando uma parceria com o Close Coletivo, do Rio, contamos com a apresentação do espetáculo 'Bichas — O Show' no Teatro Trianon, com oficinas e mesas de debate em alguns espaços da cidade. Como pré-evento, temos feito lives semanais, sempre às quintas-feiras, às 20h30. A edição atual terá o mesmo recorte temático, ainda em parceria com o Close Coletivo. Estamos sempre colocando informações sobre o evento no Instagram, em @mostrapresente e @closecoletivo.
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