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'A Lei Aldir Blanc chega como um respiro, mas para um corpo já esfalecido. Nós temos que ir além'

  • Foto do escritor: Culturália
    Culturália
  • 7 de ago. de 2020
  • 16 min de leitura

Ana Lúcia Pardo (Foto: Guga Melgar / Divulgação))

Ana Lúcia Pardo participa de uma live nesta sexta-feira (07/08), às 15h, realizada pelo Grupo de Pesquisa Officina de Estudos do Patrimônio, com mediação de Ronaldo Vicente Guimarães Júnior. A transmissão será pelo canal do Officina no Youtube. Jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas, atriz formada pela Escola de Teatro Martins Pena, no Rio, pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades (PPCULT-UFF), Ana Lúcia tem um histórico de atuação no setor cultural em diversas frentes. Antes de ser professora de Artes Cênicas no Programa de Estudos Sociais e Culturais na Pós-Graduação em Produção Cultural na Universidade Cândido Mendes, entre 2012 e 2017, e professora substituta do Departamento de Artes e Estudos Culturais no Curso de Produção Cultural da UFF Campus de Rio das Ostras, de 2013 e 2014, foi chefe de Divisão de Políticas Culturais na Representação Regional do Rio de Janeiro e Espírito Santo do extinto Ministério da Cultura (MinC), entre 2007 e 2011. Nesta entrevista exclusiva com o Culturália, ela analisa as políticas culturais no país desde o início da década de 1990, passando pela recuperação e interiorização do setor após 2000 até chegar à derrocada dos últimos cinco anos, período em que a pasta perde o posto de ministério. Participante ativa da formulação da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, aprovada no mês passado, ela analisa o contexto atual e sugere que algo além disso, o que considera apenas um 'respirador', deve ser feito para que o setor saia da 'UTI'. Em uma metáfora sobre a cultura no país atualmente, Ana diz: "Passamos das máscaras artísticas para a higiênica".


Culturália: Como você avalia as políticas culturais, no Brasil, nos últimos anos?

Ana Lúcia Pardo: Em 2010 estávamos no ápice de uma série de políticas de Estado que vínhamos compondo no âmbito nacional. Tínhamos o ministro Juca Ferreira, que, de 2003 em diante, havia sido secretário-executivo de Gilberto Gil. Eu trabalhei em quatro gestões do Ministério da Cultura. Para mim, houve uma mudança significativa na gestão de Gilberto Gil e Juca, conceitualmente falando, nas três dimensões de cultura — simbólica, cidadã e econômica. Houve uma política de dar musculatura para a pasta da Cultura. O Sistema Nacional de Cultura, baseado no Sistema Único de Saúde, que é uma referência mundial, construiu uma política com a sociedade civil. Isso se deu com as conferências. Eu estive por várias vezes nos municípios, fazendo as conferências, pré-conferências, constituindo fóruns, conselhos, políticas, planos de cultura. Foi um momento muito potente que vivemos, com o programa Cultura Viva. Como dizia o Gil, era para oxigenar os pontos vitais do país, o que ele chamava o do-in antropológico, para reconhecer e apoiar as ações artístico-culturais de baixo para cima. Muitos programas, ações e políticas que vínhamos construindo com os povos originários — indígenas, quilombolas e ciganos —, fazeres e saberes que são extremamente ricos e potentes pelo país. Estávamos nessa efervescência, construindo esse pacto federado, entre estados, união e municípios. Naquele momento, fizemos um amplo seminário chamado Cultura Para Todos (em 2003) no país, para ouvir e tentarmos corrigir as desigualdades, ampliar o acesso e desconcentrar os acessos sobretudo da Lei de Incentivo Nacional à Cultura e criar fundos setoriais com o Pró-Cultura, que havia sido aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado. Nunca conseguimos que ele fosse de fato implementado. Tínhamos, na gestão de Lula (presidente de 2003 a 2009), o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), que teve ações muito grandes nos estados e municípios, como a instalação de quatro Bibliotecas Parque pela Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro, durante a gestão de Adriana Rattes (secretária estadual de Cultura do Rio entre 2007 e 2014), em Niterói, na Rocinha, no Complexo do Alemão e no Centro do Rio. Isso foi inspirado na experiência de Medellín, na Colômbia. Fizemos uma série de editais por esse PAC. Tínhamos o Territórios da Cidadania também, em 2008. Era para implementar em 60 territórios do país, e o foco eram as regiões Norte e Noroeste Fluminense. O foco era criar políticas de ação de apoio e reconhecimento de populações quilombolas, indígenas, assentados de Reforma Agrária, agricultores familiares, pescadores e comunidades tradicionais. Em Campos, fizemos vários encontros no CEFET (atual Instituto Federal Fluminense), por exemplo. Há o assentamento Zumbi dos Palmares desde 1997, com 500 famílias. Eu nunca vou me esquecer dos depoimentos que ouvi desse assentamento, que não se sentia inserido, tinha muita dificuldade de se locomover, de ir às escolas, tinha dificuldade de acesso. Em 2010, numa matéria da página da Prefeitura de Campos, afirma que a cidade, naquele momento, era a única do estado que tinha uma secretaria específica de Cultura, coisa que depois vimos o contrário, o desfazimento, a dificuldade de manutenção de uma pasta específica da Cultura. Isso não ocorre somente no Ministério.


C.: Como ocorre esse desfazimento?


A.L.P.: Em 1990, o (Fernando) Collor (presidente da república entre 1990 e 1992) extinguiu o Ministério da Cultura, a Embrafilme, a Funarte. Itamar Franco (presidente de 1992 a 1994) retoma dois anos depois. Em seguida nós vemos extinção da pasta novamente em 2016. Depois, isso também ocorre com o governo do Bolsonaro. A quarta Conferência Estadual de Cultura, em 2018, da qual eu coordenei um dos grupos, justamente onde estavam os gestores de cultura, só aconteceu por uma força muito grande dos Conselho Estadual de Cultura, depois de adiada por três vezes. Ao ouvir a Secretária de Cultura de Campos naquele momento, percebemos que a situação era de terra arrasada. Ela não tinha recurso nem para manter o telefone, tinha de demitir pessoas. Havia um desmonte das fundações, dos recursos, dos editais, dos apoios, num momento de queda dos royalties do petróleo. Em Campos, antes desse momento, víamos o contrário. A política, as ações, os editais eram pulsantes, assim como em outros municípios. Eu fiz um levantamento dos últimos dez anos, junto com o professor Steven Dutt Ross, da Unirio, e apresentamos esse levantamento na Casa de Rui Barbosa no ano passado. Nele, percebemos uma queda brutal do orçamento ao longo dos anos. Além da queda, há a concentração desse orçamento em determinados projetos e regiões. Fizemos um comparativo do que era implementado na Cultura — com Gilberto Gil e Juca, tentamos chegar a quase 1% (do PIB) da Cultura, mas nunca conseguimos chegar a 2% — com o quanto o governo colocava de recursos na área de defesa. O recurso para Exército, Marinha e Aeronáutica era 70 vezes maior do que para a Cultura. Mais do que isso, não só há um alto recurso para a Defesa num país que não entra em guerra há 70 anos. Nós percebemos, na gestão de Bolsonaro, um aumento de 22,1% das despesas em Defesa, comparando com 2018. Isso significa um incremento de R$ 4,2 bilhões de um ano para outro. Isso vai na direção oposta à dos gastos com Educação, que caíram 16%, e com Saúde, em que houve queda de 4,3%. Houve queda na Segurança também. Ele (Bolsonaro) gastou R$ 9,1 bilhões em quatro fragatas para a Marinha do Brasil, com máquinas de guerra sofisticadas, lançadores de mísseis, torpedos pesados. Para quê? Que guerra é essa?


C.: Você encontra uma justificativa para isso?


A.L.P.: Na verdade, o que estamos vivendo é uma guerra cultural, que estão chamando de marxismo cultural, ou seja, não querem discutir as contradições de um capitalismo de Estado em estágio bastante avançado, o que Marx estaria questionando, porque é uma guerra de classes, com o aumento das desigualdades e agora mais acirrada ainda por esse desmonte nos campos federal, estadual e municipal. Nossa área de cultura é na sua maioria informal, ela é autônoma. No teatro, por exemplo, nós não temos carteira de trabalho. Raramente você vai ver um trabalhador da área da cultura com trabalho fixo. Nós trabalhamos com artesanias, slams, hip hop, funk, capoeira, folia, jongo. São ações presenciais que estão impedidas de acontecer há quatro meses e que já vinham com cortes profundos e com profundas censuras e perseguições ao campo do pensamento, como em várias peças de teatro que foram retiradas de cartaz, em filmes, na Bienal do Livro. Nesse desfazimento dessa pasta da Cultura, em um ano e meio da gestão Bolsonaro, cinco secretários já passaram por ela. Há também uma desinstitucionalização das políticas de Estado, sem Conferência Nacional de Cultura, o que era para ter acontecido em 2016, sem um Plano Nacional de Cultura, o qual expira neste ano, sem que haja uma definição sobre o futuro dele. Isso sem contar com o desmonte das fundações vinculadas ao antigo Ministério da Cultura, como a Funarte, Casa Rui Barbosa, que vai se transformar em museu, Fundação Palmares, Iphan, e com os sucessivos cortes que mencionei, dos Pontos de Cultura, do Cultura Viva. Estamos vendo essa perseguição e censura na Educação também, com cortes de 30% desde o ano passado, com a universidade sendo chamada de balbúrdia com plantação de maconha, numa tentativa de implementação do ensino privado. Temos visto isso também no Meio Ambiente, nas pesquisas do CNPq e da CAPES, na demissão do presidente do Inpe. É um desfazimento do Estado, das políticas de Estado, um enfraquecimento em nome do negócio, do livre mercado, como apareceu muito naquele vídeo polêmico do Bolsonaro. É um desfazimento do Bem-Estar Social. Estamos numa precarização crescente do mundo do trabalho. Se nossa área já era frágil, informal, autônoma, estamos falando, então, de um trabalhador ou trabalhadora da cultura que está extremamente vulnerável. Aqueles que têm seus equipamentos, seus espaços, estão sem poder funcionar e estão sem dinheiro para pagar e sem direitos trabalhistas e previdenciários. Estamos falando de um trabalho escravizado, de um empobrecimento. Ele é chamado microempreendedor da cultura para dar a ideia de que ele é um microempresário, mas na verdade ele é um subalterno, um explorado. Há um desmonte acelerado no campo cultural, estamos à deriva. Se o setor cultural tem 5,7% da força de trabalho do país, isso significa mais de 5 milhões de trabalhadores. Quarenta e quatro por cento deles são de trabalhadores informais. Isso, no meu entendimento, deixa um país subserviente. Éramos um país que vinha crescendo as suas políticas, em conjunto com outros países da América Latina, pois os Pontos de Cultura se espalharam para outros países. Percebemos que essa emancipação e autonomia estão agora ameaçadas com esse livre negócio, o que atinge os direitos básicos de cidadania, atinge a soberania do país, nessa dependência com os Estados Unidos, sobretudo neste governo.


C.: Quais são os efeitos disso?


A.L.P.: Os efeitos são grandes, de 2016 para cá, com esse golpe que tirou a Dilma (Rousseff, presidenta de 2011 a 2016) da Presidência. Isso não vem só com o Bolsonaro, vem sobretudo com Temer, com a "PEC das maldades", de paralisar todo o crescimento, com as reformas previdenciária e trabalhista, que estão tirando direitos que já eram poucos. A exploração de terras indígena, as grilagens e outras coisas mais contra os povos originários são antigas, mas hoje você vê um governo liberando essa invasão, essas queimadas por madeireiros, grileiros e seringueiros, indústrias, agronegócio, e isso atinge a Cultura, pois estamos falando das culturas originárias, que são o nosso legado. Não estamos falando somente das artes. Tem gente que tem uma compreensão muito reduzida do que seja cultura. De que direitos humanos se fala, de que democracia, se estão atingindo direitos básicos que estão na constituição, o que leva a uma extrema pobreza, população nas favelas, sem-teto, sem-terra, pessoas em situação de rua, indígenas, quilombolas, trabalhadores do campo, terceirizados, entregadores de aplicativo, artistas de rua, slams, artesanato? Estamos aí numa falência do setor, quase. Em meio a isso, a Lei Aldir Blanc chega como respiro. Na verdade, esse era um dinheiro que estava parado.


C: Como os municípios se organizaram nesse período? Houve alguma transformação nas políticas culturais municipais?


A.L.P.: Eu tiro o meu chapéu para os municípios. Quando eu trabalhei no Ministério da Cultura, onde fui ouvidora, coordenadora de pesquisas culturais, assessora da Funarte, da Biblioteca Nacional, sobretudo na representação regional do Minc, nessas políticas do Sistema de Cultura, eu fui a cada município mais de uma vez, para fazer as conferências, dialogar com secretários de Cultura, fundações, com gestores, para reunir, construir, os municípios vestiram a camisa, abraçaram com muita força, participando de fóruns, criando conselhos, trazendo suas propostas, trazendo suas diretrizes, se organizando com seus coletivos, nas câmaras setoriais também, das artes, pois nós reunimos cada câmara setorial para criar planos. Eu hoje vejo que esses conselhos e fóruns estão muito vivos nos municípios, mesmo com o desmonte, mesmo com a precariedade, mesmo com o desfazimento das políticas culturais que construímos junto com os municípios. Os municípios demonstraram um envolvimento, um compromisso muito grande. Eu fiquei muito impactada de ir a cada município e ver a potência cultural e artística em cada município. Potência viva em cada município do Rio de Janeiro, o que não aparecia. A capital roubava a cena, no meu entender, por ser a capital cultural, turística, grandiosa. A potência dos outros municípios ficava na invisibilidade, mas isso veio para a centralidade graças aos fazedores de cultura, em conferências, congressos, com Pontos de Culturas, com audiências públicas no campo legislativo. Houve um compromisso e uma mobilização muito intensa nos municípios, mais até do que o próprio município do Rio de Janeiro, para construírem essas políticas. Eu ficava muito feliz, pois sentia que a política pública estava de fato sendo implementada. Além disso, tinha a ideia de as políticas não ficarem circunscritas a Brasília, a ideia era manter o munícipe federado com sua autonomia, com sua emancipação, a partir de sua realidade local. O que nos incomodava era ver o fazedor de cultura sentado para ser recebido pelo gestor, quase como um pedinte com o chapéu na mão, dizendo, por exemplo, que tinha ido até lá porque foi convidado para fazer a Folia de Reis, o Jongo ou artesanato, em outro local, sem ter recurso até para se deslocar. Na ausência de uma política, você fica atendendo a esses pedidos de gabinete daqueles que conseguem chegar ao gabinete, pois a maioria não consegue. Então, eu tiro o meu chapéu para a organização dos municípios, o que continua potente.


C.: Vimos, nos últimos meses, o ressurgimento da Cultura com força na agenda política, o que culminou na aprovação da Lei Aldir Blanc. Como se deu esse processo?


A.L.P.: Houve muita mobilização. Quando há esse desfazimento, o que piora com a chegada da pandemia, o setor cultural entra na UTI sem respirador, num estado de emergência, surge no horizonte essa Lei de Emergência Cultural, ainda não chamada de Aldir Blanc naquele momento, porque inicialmente a deputada Benedita da Silva (PT-RJ), presidenta da Comissão de Cultura da Câmara, começou a receber muitas dessas demandas, dessas reclamações pela falta de recursos. Impactada com tudo isso, ela se reúne com outros 26 deputados de diferentes partidos, como PC do B, PSOL, PDT, PSDB, oito partidos em 14 estados, forma um grupo, com assessores parlamentares e também com ex-gestores do Ministério da Cultura, como Celio Turino, e há quatro meses vem construindo com vários projetos já pensados, como de Jandira Feghali (PC do B-RJ) e José Guimarães (PT-CE) e outros tantos. A Jandira Feghali foi a relatora na Câmara, no que foi uma vitória histórica. Só o Partido Novo votou contra. Depois, essa lei vai para o senado, sob relatoria do Jaques Wagner, que conseguiu negociar, retirar emendas que atrasariam a votação. Lá foi outra vitória histórica. Nós fizemos carta aos senadores. Em cada processo, nós dizíamos o 'aprova já'. Fizemos uma carta aos senadores do Rio, com mais de 400 assinaturas. Entregamos a cada um deles. Foram quatro meses de trabalho intenso de articulação, reunião, webconferência regional, nacional, local, Confederação de Secretários Estaduais de Cultura, secretários... O detalhe é que esses R$ 3 bilhões da lei estavam parados no Fundo Nacional de Cultura. Esses recursos estavam retidos. Cinquenta por cento deles vão para estados e outros 50%, para os municípios, com renda básica de R$ 600 em três parcelas para os trabalhadores da cultura que estão vulneráveis. São 42 itens na lei só para os subsídios para os espaços culturais e artísticos independentes. São subsídios de R$ 3 mil a R$ 10 mil, dependendo do porte de cada espaço. Há também a aquisição de ativos, pois diversas exposições foram paradas, como shows, festivais e feiras, com compra antecipada de ingressos, livros. Estamos chamando isso de aquisição de ativos. Há outro inciso para as chamadas públicas, como editais, prêmios e produções. Neste caso, haverá R$ 104 milhões para os estados, que vão se concentrar principalmente na renda básica, pois não poderá receber esse recurso a pessoa que já recebeu o auxílio emergencial. E há um prazo de execução em 120 dias. Para o Rio de Janeiro, vêm exatamente R$ 39.392.112,00 para executar em equipamentos e nos editais num prazo de 60 dias. Foi aprovada na Câmara a MP 986, que regulamenta os prazos e a execução desses recursos nos estados e municípios, que vão enviar os seus planos de trabalho para o Ministério do Turismo pela plataforma Mais Brasil em prazos de 60 dias para os municípios e de 120 dias para os estados.


C.: Como você analisa o papel que os municípios deverão desempenhar na implementação da Lei?


A.L.P.: Durante esses quatro meses, uma das coisas que nós reforçávamos era não concentrar só em espaços e renda, mas de repassar esses recursos para estados e municípios por causa dessa autonomia para os entes federados. Só quem conhece a realidade local é o município, ainda que o estado e o governo federal possam estar próximos. Portanto, é muito importante esse mapeamento nos cadastros. Quem é esse agente cultural? Onde ele reside? O que ele está fazendo? Há quanto tempo ele não recebe? É importante ter esse histórico. Em Cachoeiras de Macacu, estão colocando carros de som para divulgar a lei. Estamos falando de um momento de isolamento, de não aglomeração, só que está todo mundo na relação online. E as pessoas que não estão têm acesso à internet? Elas não ficam sabendo do cadastramento, dos editais, dos recursos, não sabem que podem se inscrever. Vinte e um por cento das pessoas que se cadastraram em Cachoeiras de Macacu se predispuseram a fazer um esforço para fazer chegar a informação a quem não tem acesso à internet. Havia essa pergunta no cadastro, o que achei muito interessante. É preciso, também, fazer um alinhamento para evitar duplicidade nos cadastros, fazer uma ampla divulgação dos acessos, chegar até esses agentes e espaços. As comissões de avaliação serão fundamentais no caso dos editais, para que os mais vulneráveis sejam atingidos. É fundamental também conhecer a lei, para não esbarrar em algum impedimento. Há contrapartidas. Por exemplo, as apresentações artísticas devem ocorrer preferencialmente em escolas públicas ou online.


C.: Quais os desafios para a aplicação da Lei Aldir Blanc?


A.L.P.: Dados precisam ser atualizados. É importante fazer um levantamento de editais passados. Nós percebemos, nos últimos 10 anos, que o sistema nacional de cultura tinha o SNIC, Sistema Nacional de Informações Culturais. E isso estava desatualizado. As comissões analisadoras têm de ser democráticas, capacitadas e justas. Sugiro o formato prêmio para os editais, pois esse foi a maneira que encontramos no Ministério da Cultura para ações de jovens iniciantes que não têm CNPJ. Como você vai dizer ao indígena que ele tem que ter um CNPJ, como vai cobrar isso de um quilombola. Isso é mais flexível até para a prestação de contas.


C.: Qual legado a Lei Aldir Blanc pode deixar para os municípios?


A.L.P.: Quando se fala em legado, acho que a lei de fato vem para dar uma oxigenada. Estamos na UTI sem respirador. A lei vem como esse respirador, para dar uma sobrevida a um setor que está em estado de emergência. Nosso fazer artístico e cultural sempre apareceu pelo que nós fazemos. Uns ficam mais na centralidade, evidenciados pela televisão, e grande parte não. Mas, de qualquer maneira, temos sempre um palco, um chão, um lugar em que nós chamamos a atenção por aquilo que nós fazemos. Nós estamos chamando a atenção agora para a nossa fragilidade, nossa dimensão humana, de vida, que pode morrer, como muitos estão morrendo diariamente, principalmente os mais pobres. Como você vai dizer para ficar dentro de casa, se o cara vive na rua? A pandemia acirrou a desigualdade. Nós, da cultura, ao invés de ficar chamando a atenção para o fazer artístico e cultural, o que é muito bom, alegre, mas ninguém conhece os nossos bastidores, o que nós sofremos, sem grana, sem direitos trabalhistas. Agora nós estamos escancarando essa vida, essa fragilidade, essa vulnerabilidade. A Lei Aldir Blanc chega como um respiro, mas para um corpo já esfalecido. Nós temos que ir além. A lei fortaleceu os fóruns e conselhos de cultura nos municípios, no estado, a retomada do sistema de cultura, de alguma forma. Se você está repassando recursos para estados e municípios, principalmente pelo fundo de cultura, mas não só pelo fundo, você está fortalecendo essa política, você está fortalecendo os Pontos de Cultura, que estavam desfalecidos, inadimplentes. O Fundo Municipal de Cultura do Rio estava parado, e o secretário teve de correr para implementá-lo. Acabou de ser criado o Plano Regional de Cultura do Médio-Paraíba, assim como o da Baixada Litorânea. Houve atualização dos cadastros. Estamos fortalecendo o Cultura Viva, assim como o diálogo entre a sociedade civil e o Poder Legislativo, fazendo cursos, seminários. Fui chamada por três universidades. Vou falar com a UENF e estou muito feliz com isso. Precisamos, porém, ir além disso. A Lei Aldir Blanc não é uma política, ela é uma implementação de medidas emergenciais, com recurso já existente e que estava parado no Fundo Nacional de Cultura, ou seja, não tira recurso de outra fonte. Política é o Sistema Nacional de Cultura, é o Cultura Viva, são outras políticas sobre as quais devemos nos debruçar, fortalecer os Planos Setoriais, pois não conseguimos avançar com isso. O único fundo que conseguimos alavancar nacionalmente foi o do audiovisual, pois parece que o Ministério do Turismo quer retomar com algum recurso. O Plano Nacional de Cultura encerra neste ano e ainda não se sabe o que vamos fazer daqui para frente. Se você não tem uma política de Estado, você tem uma política de gestão. É o fulano que entra lá, é o novo gestor, e ele escolhe o que vai fazer da cabeça dele, sem entender o que ocorreu antes dele, que memória foi essa. Não foi uma invenção da nossa cabeça essa política. O que há no plano é baseado em propostas e diretrizes construídas com a população a partir de emergências. Se você nega essa construção que veio antes, você não tem um compromisso público com essa política que é para além de sua gestão. Estamos vivendo isso agora, o que está tendo um profundo impacto nos municípios, com desfazimento da pasta, cortes no orçamento, falta de editais. Isso deixa trabalhadores da cultura em estado de vulnerabilidade. A Lei Aldir Blanc tem de ser executada até 31 de dezembro. E depois? Precisamos olhar para frente também, para além da emergência, para além da pandemia. Não podemos achar que essa lei vai solucionar todos os problemas da cultura. A cultura precisa estar com a musculatura mais forte para se manter viva. E isso também é urgente, eu nunca perco isso do horizonte. O Aldir Blanc, grande letrista, estava sem um plano de saúde quando ficou doente com a Covid. Essa é a prova da vulnerabilidade de um trabalhador da cultura, como era o Aldir Blanc.


C.: A mobilização para a aprovação da lei também deixa legado?


A.L.P.: Sim. A mobilização que criamos, e que ainda cria, como o 'pague já', 'sanciona já', 'aprova já', vamos no card, na live, webconferência, nos deixa em estado permanente de mobilização. Conseguimos mobilizar o país para a agenda da cultura, para a nossa situação de vida. Existe uma visão muito errônea, às vezes, do que seja a nossa área. A cultura é vista só como arte, ou grande arte, mega show, como se nós vivêssemos muito bem, como se tivéssemos muitos recursos. Nós sempre entramos alegres no palco, para cima, brincando, passando o chapéu, teatralizando. Há uma encantaria, uma brincadeira, um tom farsesco, cômico, até trágico, mas tem sempre uma roupagem, um figurino junto conosco. Dificilmente esse trabalhador da cultura consegue se desencapar de todo esse cenário e se expor para dizer que é humano, que tem pele, que morre, que tem vida, filhos para criar, não tem moradia, que não tem como passar mais o chapéu, que está sem dinheiro, sem recurso para pagar a própria comida e que isso não é nada engraçado. É trágico e real. Como trabalhamos com a ficção, há uma confusão do que seja o trabalhador da cultura, que dificilmente expõe o seu fazer. Nunca antes colocamos numa tela, como estamos fazendo agora, a nossa real situação de vida. Eu me emociono até quando eu falo isso. A população, então, abraçou a causa. Eu tiro o chapéu para comunidades como Rocinha, Maré, Paraisópolis, Capão Redondo. Elas estão fazendo profundas campanhas de distribuição de alimento, de cuidados com suas comunidades. Então, eu sinto que a cultura foi abraçada por todos os brasileiros. E não teve como ser diferente, os deputados e senadores também abraçaram isso. É claro que um ou outro foi contra, mas a maioria abraçou, o que gerou essa vitória histórica da aprovação da lei. A lei não tem um só líder, há vários autores, vários parlamentares que se envolveram, que abraçaram essa causa diariamente, uns mais do que outros, mas não tem nome, ela ganhou a população. Todo mundo abraçou essa causa, fazendo live, webnário, moção de apoio, instituições abraçaram. Então, foi uma campanha. A cultura ganhou uma centralidade aí. Passamos das máscaras ancestrais, indígenas, ciganas, quilombolas, africanas, cômicas, passamos das máscaras artísticas para a higiênica. Esperamos o momento para voltarmos para as nossas máscaras artísticas.

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