Arquivo Público Municipal de Campos faz 19 anos em meio a incertezas sobre seu futuro
- Culturália
- 15 de mai. de 2020
- 10 min de leitura
Atualizado: 17 de ago. de 2020
Em entrevista ao Culturália, a diretora Rafaela Machado lamenta a suspensão de contratos de RPAs e de estagiários durante a pandemia. Equipe agora tem apenas dois integrantes

O Arquivo Público Municipal Waldir Pinto de Carvalho, em Campos dos Goytacazes, completará 19 anos de existência na próxima segunda-feira, em meio a incertezas sobre o seu futuro. No dia 6, a prefeitura anunciou a suspensão dos contratos de estagiários e de Recibos de Pagamento a Autônomos (RPAs) de atividades que estão paralisadas durante a pandemia da Covid-19. Nove estagiários e nove prestadores de serviços autônomos foram desligados nesse processo, e o Arquivo agora conta apenas com a sua diretora, Rafaela Machado, e um funcionário. Ou seja, de 20 integrantes, a equipe passa a ter apenas dois. Apesar da promessa de a medida ser revogada após o retorno à normalidade, o momento é de apreensão para Rafaela. Nesta entrevista ao Culturália, a historiadora fala sobre a importância deste equipamento para a memória da região Norte-Fluminense. Administrado pela Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, que é vinculado à Secretaria de Educação, Cultura e Esporte, o Arquivo Público está instalado no Solar do Colégio, o edifício mais antigo de Campos, na Estrada de Tocos. Ele foi construído pelos jesuítas entre os anos de 1650 e 1690. Com cerca de 12 mil documentos catalogados, o que representa de 30% a 40% do volume de 600 metros lineares que consta no acervo, o local recebia uma média de três mil visitantes por ano antes do fechamento temporário. O Arquivo foi criado pela Lei nº 7060 de 18 de maio de 2001 e inaugurado em 28 de março de 2002, quando Campos completou 167 anos. Confira a entrevista com Rafaela Machado na íntegra!
Culturália: Onde ficavam concentrados os documentos antes da ida para o Solar?
Rafaela Machado: Esses documentos ficavam em espaços na cidade. Uma parte ficava no porão do Palácio da Cultura. A Fundação Cultural ficava ali no Palácio da Cultura, na região da Pelinca. E era uma região muito úmida. Uma parte dessa documentação ficava ali, mas ficava sem uma guarda correta. Outra parte ficava no Fórum Municipal, que à época não era na Beira-Rio, era onde hoje é a Câmara Municipal. Havia também uma documentação espalhada pelos cartórios da cidade. Então, foram sendo realizados levantamentos ao longo do ano de 2001, até que o arquivo fosse de fato implantado em 2002. O arquivo foi criado em 2001 e até de fato ele ser implantado em 2002, essa documentação foi sendo levantada e recolhida nesses lugares.
C.: Por que o Solar do Colégio foi escolhido para abrigar o Arquivo?
R.M.: A grande incentivadora e encabeçadora da criação do Arquivo, lá pelo início dos anos 2000, foi a UENF (Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro), que era administrada pela Fenorte (Fundação Estadual Norte Fluminense, extinta em 2016). Campos precisava de um arquivo à época, pois já era um período em que a região despertava muito interesse de pesquisador, muita gente vinha para Campos para fazer pesquisa. Não havia um lugar que concentrasse essa documentação. Tinha muito documento de Campos sendo levado até para fora do Brasil, sendo vendido nesses sebos online, em leilões. Havia uma discussão de muito tempo para se criar um Arquivo em Campos. Existe um volume documental muito grande. Tinha de ser um edifício muito grande. O Solar do Colégio é o edifício mais antigo de Campos. Ele já havia passado por uma restauração, em um projeto do Darcy Ribeiro. Ele restaurou o Solar na década de 1990. A ideia dele era fazer do Solar uma escola de cinema, no modelo da Escola de Cinema de Havana. Essa restauração do Solar foi toda feita para isso. A parte interna, inclusive, foi modificada. A parte externa, não, pois é um edifício tombado. O Darcy ficou doente, faleceu, e o projeto acabou parando. Com isso, o Solar ficou dez anos abandonado. Quando circulou a ideia da criação do arquivo, o Solar estava restaurado e sem utilização. As alternativas eram o Solar da Baronesa e o Solar dos Airizes, que sequer pertencia à municipalidade ou ao poder público. A alternativa mais viável era o Solar do Colégio, apesar de isso não ter sido consenso. Houve muita discussão na época sobre a instalação no solar. Houve uma briga na época.

C.: Quantos documentos há no Arquivo?
R.M.: São 600 metros lineares. É muita coisa. Nós não temos isso em números, pois ainda não conseguimos trabalhar toda a documentação. Toda a documentação ainda não foi inserida na base de dados. Não conseguimos ainda fechar o número de documentos. Trabalhado, ou seja, o que nós já higienizamos e inserimos no banco de dados, o que já está disponível ao pesquisador representa de 30 a 40 por cento de nosso universo documental. Ainda temos muito o que trabalhar. Nossa equipe é muito pequena e o nosso universo documental é enorme.
C.: Quais são os documentos mais importantes do Arquivo?
R.M.: É sempre bom lembrar que temos documentos de grandes vultos campistas, dos grandes nomes campistas, mas temos documentação que também serve para ilustrar a vida de pessoas comuns e que foram protagonistas de suas vidas, de suas épocas, e que hoje estão esquecidas pela história. Temos o inventário do Barão da Lagoa Dourada, que foi o "Barão de Mauá" de nossa época. Ele tem oito volumes de inventário, foi o construtor do Liceu, da Ponte Barcelos Martins. Temos o inventário e testamento da Benta Pereira, que é considerada uma heroína campista. Temos também documentos de um fundo chamado Documentos de Escravos. Por exemplo, eu considero que são alguns dos documentos mais raros do Brasil. Existe o auto de perguntas feito aos negros quilombolas. É assim que está descrito no documento. São dez escravos inqueridos, que passam por testemunho. Eles contam como era a vida no quilombo. Esse quilombo ficava em Travessão. É um dos documentos mais raros e interessantes sobre a vida em quilombo. É uma das poucas formas não só de entender a vida em quilombo, mas de ouvir a voz do escravo. Por mais que o escrivão fosse um branco, fosse um letrado, por detrás dali é o escravo que está falando com você. Tem outro documento de um escravo que foi preso porque todas as semanas ele juntava dinheiro com os companheiros e comprava o Monitor Campista. Ele lia o jornal, isso em 1887, e dizia para os companheiros que eles já eram livres. A abolição não havia ocorrido ainda. Então, ele conseguiu incitar uma revolta onde trabalhava porque ele lia para os companheiros que a abolição já havia se dado. O documento mais antigo é de 1644. É um registro de doação de sesmaria. É um livro de notas, com vários documentos. O primeiro deles é um registro de doação de terras.
C.: Quem utiliza o Arquivo?
R.M.: Eu estou lá há 13 anos. O (Carlos) Freitas, que foi o primeiro diretor, ficou até o ano passado. Nós falamos que é gestão única, pois ele nos ensinou. A equipe é toda a mesma. Temos duas riquezas ali, o Solar e o Arquivo. Enquanto Arquivo, nós cuidamos da documentação e atende a um público de pesquisadores e acadêmicos. Quem vai pesquisar é estudante, professor ou pesquisador. Além disso, estamos instalados no Solar do Colégio, o edifício mais antigo de Campos. Temos feito um trabalho de educação patrimonial, de resgate da história de Campos e de valorização da memória e da identidade. Eu não falo que é resgate da cultura porque ninguém resgata cultura, a cultura você tem. Temos feito um processo de valorização, o que tem funcionado muito. Apesar de sermos um Arquivo voltado mais para o público acadêmico, recebemos público infantil há muito tempo, além de um público juvenil, de escola, para fazer visita mediada. Nossas visitas são voltadas para contar um pouco da história de Campos, e não só a história do Solar. O Solar tem uma história incrível, a qual representa muito da história de Campos. Começamos pelos índios, vamos para os jesuítas, contamos a história da escravidão em Campos, uma marca da região, vamos para o ciclo dos fidalgos do açúcar. Quem nos visita consegue entender de forma material um pouco dessa história. Por ano recebemos uma média de três mil visitantes, entre pesquisadores e outros tipos de visitantes, o que inclui um público que é muito assíduo: educadores. Esses professores nos procuram muito para a formação extraclasse. Damos muitos cursos de formação continuada, seja em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, seja diretamente. O Arquivo acaba sendo um suporte para esses professores também. É um público que nos acessa bastante, o qual acaba utilizando também o arquivo para suas aulas de campo, como uma forma de dinamizarem as suas aulas.
C.: Qual é o tamanho da equipe de trabalhadores do Arquivo?
R.M.: Nós tínhamos nove RPAs, que foram desligados, como a Prefeitura diz. Além disso, temos nove estagiários de História e de Geografia. Eles também foram afastados até o retorno das atividades. Por isso, hoje somos eu e um museólogo. Apenas duas pessoas trabalhando. A prefeitura demitiu seis mil pessoas. Ela fala que vai recontratar, mas não dá garantias. Nossos RPAs são nove. Eu estou lá há 13 anos, tem gente que está lá há 19 anos. A gente tem o único laboratório de restauração do interior do Estado do Rio. Fora o Rio de Janeiro, nem Niterói tem laboratório de restauração. A gente só tem uma restauradora, que é RPA. Ou seja, a nossa restauradora foi mandada embora. Temos profissionais extremamente técnicos, capacitados, que são RPAs. São profissionais que estão conosco há muitos anos. Além dessa restauradora, há profissionais que trabalham conosco há 19 anos. Outros que trabalham há 13 anos, 11 anos. Não são profissionais que podem ser substituídos, porque são extremamente técnicos, são historiadores, são pessoas que fizeram curso para se tornarem técnicos naquela área.
C.: Qual é a rotina de trabalho no Arquivo?
R.M.: O arquivo funciona com o mínimo do mínimo do mínimo dos trabalhadores. Nós tiramos leite de pedra. Quando eu entrei, o laboratório de restauração tinha 15 pessoas. Hoje ele tem uma pessoa. Desses nove bolsistas, eu coloco três ali. Só que estagiário só fica por dois anos. A pessoa absorve o treinamento, mas você não consegue aproveitá-la. O arquivo é dividido em setores que funcionam muito bem, mas com pouquíssimas pessoas. Além do laboratório de restauração, temos uma sala de consulta, para o atendimento ao público, onde o pesquisador recebe o documento. Essa sala de consulta é especializada em história regional, com livros esgotados, raros. Temos duas profissionais nesse setor, que tem grande fluxo de movimento. Existe o arquivo permanente, que é o local responsável por fazer a organização do trabalho de higienização, inserção em base de dados, planilhamento, transcrição de documentos, a parte técnica do trabalho. Nele, temos um profissional que faz a coordenação direta dos estagiários e outra pessoa que faz a organização maior do trabalho. Existe ainda um setor pedagógico-cultural, que faz a parte de desenvolvimento de atividades de atendimento ao público, de visitas, atividades guiadas, atividades com o público infantil, projetos para a exposição.
C.: Quem cataloga os documentos?
R.M.: Pela experiência, nós deveríamos ter um arquivista, o que hoje nós não temos. Na maior parte das vezes, a catalogação é feita pelos estagiários, mas existe uma supervisão, uma linha de filtro, que é feita por dois historiadores com mais experiência com a documentação, no trato com a documentação. Eles fazem a supervisão do trabalho e a inserção na planilha de banco de dados. Atualmente nós temos cerca de 12 mil documentos em banco de dados. Se você chega lá e fala seu nome e sobrenome, eu jogo no banco de dados, e nós conseguimos, dentro desse universo de 12 mil nomes do século XVII ao século XX, encontrar o documento com a referência da caixa em que ele está. Cada documento tem um código de identificação. É uma organização muito minuciosa. Por isso, o trabalho é às vezes tão demorado. Com uma equipe tão reduzida, fica difícil. Quais são as etapas? A primeira coisa é fazer a higienização do documento. Nós não descartamos documento. Depois é feita a identificação do documento, a numeração e o encaminhamento ao laboratório de restauração para saber se ele vai passar por conservação ou restauração. A restauração é um processo muito mais longo, mais custoso, tanto financeiramente, quanto de tempo. A conservação é mais rápida porque é mais preventiva. O documento retorna para o arquivo permanente e vai passar por um processo de descrição, que é a fase do planilhamento. Você vai dizer que documento é esse, quais são as partes que compõem esse documento. Aí, sim, ele entra para o banco de dados.
C.: Quais são as maiores dificuldades?
R.M.: Nossa maior dificuldade é cumprir bem essas etapas. Quando o documento vai para o laboratório de restauração, e ele precisa passar por restauração, um dos problemas é ter só uma restauradora. O segundo problema é que é um tratamento extremamente caro. Uma folha de papel japonês custa um pouco mais de R$ 20. Nós dependemos de recurso público. Depende de que a prefeitura faça compras. Anualmente nós passamos os pedidos de recursos para a prefeitura, expomos a necessidade de intervenção nesses documentos, mas nem sempre nós temos material para fazer restauração.
C.: Para que serve o papel japonês?
R.M.: Ele é um dos materiais de restauração usados para fazer a intervenção. É um papel especial, como o papel seda. Não usamos por completo, pegamos pedaços ou fitas. O laboratório produz popa de papel também, enxertos de papel. A folha do papel tem uma gramatura específica. Se é um documento do século XVII, há madeira em sua composição. A produção no laboratório tem de acompanhar a composição original. Temos de fazer um estudo de autenticidade e de originalidade do documento. Tem de ver a solubilidade da tinta. Tem de ver se o documento aguenta passar pelo processo de restauração aquoso, pois quase todos os procedimentos passam por meio aquoso. Se a tinta não suporta isso, você tem de buscar outros recursos.
C.: O Arquivo pode ser melhor usado?
R.M.: Eu não digo que ele precisa ser melhor usado, pois ele tem sido muito acessado nos últimos anos. Ele pode ser melhor estruturado, melhor divulgado. Tinha de receber mais atenção do poder público, tanto municipal, quanto estadual, federal. É muito importante entender que a documentação que nós guardamos hoje não diz respeito só a Campos, diz respeito ao Norte e Noroeste do Rio. Faz referência a tudo o que era a capitania da Paraíba do Sul. A região tem de guardar melhor o Arquivo e entender a importância disso tudo, embora a obrigação seja de fato da prefeitura.
Culturália procurou a Prefeitura de Campos durante a manhã desta sexta-feira para saber quais garantias ela dá de que os trabalhadores que tiveram contratos suspensos serão recontratados após a pandemia, porém não foi atendida até a publicação desta entrevista, às 12 h. O espaço para que a prefeitura se pronuncie está aberto.
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