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Coletivo Artístico Saravá: confidências de uma Professora Pedra

  • Foto do escritor: Culturália
    Culturália
  • 17 de jul. de 2020
  • 6 min de leitura

Por Alissan MARia (Instituto Federal Fluminense - campus Campos Centro)


Pedindo licença poética ao Jongo de Pinheiral:

Às margens do Paraíba, em Campos dos Goytacazes,

o Saravá responde

Assim como aprendemos com a ancestralidade pedimos licença para pisar nesse chão bem devagarinho, já que continuamos sendo pequeninos diante da tarefa de bulir com saberes e aprenderes que, antes de quaisquer considerações, tratam de existências. Algumas vezes acionarei aqui o uso da primeira pessoa do plural não porque sou uma “porta-voz”, mas porque temos aprendido que não existe o indivíduo sem o coletivo e o coletivo não existe sem os indivíduos: somos nós. Nós somos Saravás.


Por vezes, também falo em primeira pessoa do singular, porque existo nesse percurso formativo: o vivo e sinto de maneira singular. Sinto-me pedra ocupando meus espaços devidos. Estarei ali fincada no curso de um rio feito de muitas águas que seguirão seus cursos. Vivo e viverei muitas coisas com essas e outras águas, mas estarei ali plantada – testemunha viva, velha e antiga, das singularidades de variados processos únicos e compartilhados. Nossos feitos juntos — pedra e rio — sempre serão irrepetíveis e fundados na efemeridade de nossas obras. No entanto, exatamente por isso, grafadas no espaço-tempo de memórias corporificadas que desenham seus próprios cursos, tornar-se-ão afluentes, jorrarão novas nascentes e multiplicar-se-ão em seus territórios. E, para o entendimento de que o curso das águas corre sempre para frente não passando nunca no mesmo lugar, somos chuva — realimentando rios, visitando pedras e fazendo germinar novas sementes. Somos ciclos que girando, retornamos sempre para prosseguir.


Registro de experiência de formação em performance (Foto: Ana Barbieri/ Acervo do Coletivo Artístico Saravá)

O Coletivo Artístico Saravá é fruto do encruzilhamento de estudantes — águas — do curso de Licenciatura em Teatro — IFF campus Campos Centro — e uma professora de Teatro — pedra — cuja formação docente e sobretudo a vida foram intensamente afetadas pela relação com saberes de comunidades tradicionais de "motrizes africanas" e os Estudos da Performance. No caminho com esses estudantes, ora fui uma grande pedra ora me multipliquei eu mesma em várias pedras no percurso de cada um. Nesse sentido, na delicada relação de compreender saberes e valores tradicionais na articulação de nossas existências, somadas ainda à investigação em Teatro e à docência em Teatro, nada está dado ou pronto, e a sensação de um andamento lento e moroso pungido pelo tempo do relógio que corre apressado — aquele com o qual nos iludimos de que somos nós que estamos no comando — fizeram e fazem que, muitas vezes, a ação caótica de uma provocação tenha me transformado em uma “pedra no sapato”. O tempo dos aprendizados de cada sujeito que vivem diferentes tempos individuais a um mesmo tempo coletivo é conflituoso. Águas se agitam e pedras rolam.

Registro de investigação para vídeo/foto-performance Somos Água (Foto: Emerson Dutra/Acervo do Col. Art. Saravá)

Uma pedra que se coloca no caminho das águas obriga que elas elaborem estratégias para contorná-las e seguirem seus percursos. Necessitando tecer uma estratégia para seguir, desviando e contornando pedras, as águas se esbarram umas nas outras e se relacionam — sejam essas relações fáceis ou difíceis — para prosseguir. E por mais que se preservem únicas em suas individualidades, há muito se amalgamaram e se tornaram um mesmo rio. Rio que mesmo de aparência serena tem sua própria correnteza e imprime seu próprio andamento, nem sempre constante. Sempre transborda e tanto, que de vez em quando, forma uma forte, densa e arrebatadora cabeça d’água.


E as pedras? Precisam aprender, no exercício de ser pedra, a ter paciência, pois leva tempo — às vezes muito — para que compreendamos que não pode haver pedra no sapato se estamos descalços, com o pé na terra, na água, na pedra, na lama. Quanto tempo nos fazem ou nos fazemos ficar de pé calçado? Não é de uma hora para outra que o pé no chão vira rotina.


Quando bem grande a pedra parece plantada ali naquele rio. Absorve e se dilata com o calor e também se resfria com a água, com a chuva, com a ação do tempo. Quanto mais redondas, mais esculpidas pela ação das águas, mais oportunidade teve de ser testemunha ativa e fiel dos processos e mais aprendeu para receber novas águas. Quando múltiplas e em diferentes tamanhos, diante da atualidade das relações, não tão somente são esculpidas, mas também são roladas pela força das águas.


Surpreendem-se com a leveza com que lhe atravessam e contornam. Às vezes até sem sentir de imediato. Quando vê já foram! Às vezes chora de saudade, mas sorri, pois sabe que estão preparados para seguir. Às vezes são roladas com tanta força e ímpeto que também se chocam. Podem rachar, lascar e até quebrar. E exatamente por isso, têm a possibilidade de conhecer novas paisagens, se adaptar a novas condições, reaprender a existir e se elaborar em provocações outras para as mesmas e novas águas. Quando em lascas ou em menores proporções, dependendo da intensidade impressa pelas águas, pode até acompanhá-las em um percurso mais, juntos mudando ou fazendo novos cursos, modificando paisagens pela força de nossas existências. Fazendo assim com que tudo esteja em seu devido lugar, mas nunca no mesmo lugar. Um rio chamado Saravá.


Ser professora de Teatro alinhada ao compromisso com a educação das relações étnico-raciais e o estudo dos saberes tradicionais de afrorreferência fez-me aprender que a docência se compõe sobretudo do alargamento da capacidade de observação da natureza dos indivíduos e do espaço-tempo criado por nós — professora e estudantes — sujeitos do processo de aprender, de ensinar, de aprender a ensinar, de ensinar a aprender. E isso só pode ser construído em parceria, pela e na experiência e de maneira contínua — Pedra só pôde ser pedra, pois vive a experiência de ser pedra na relação com a água, que também sabe ser, pois sempre foi e sempre será água à medida que compreende que todos com que se relaciona nesses processos também lhe são pedras.


A escrita de alguém, professora-artista neste espaço, que hoje não consegue (e não quer) se distanciar da maneira como uma sujeito de uma comunidade tradicional vem aprendendo a se relacionar com o mundo, denuncia que determinados saberes demandam vivência, jogo, relação que se presentificam pela existência de nossos corpos como sujeitos de nossos territórios. Diz bem a poetisa: Meu corpo é minha própria embarcação. Sou minha própria sorte. Por isso, nossos modos de existir dependem de nossas poéticas — nossos modos de fazer. Nossas poéticas têm suas estéticas. E toda atitude estética é política. Por isso, uma formação docente em Arte, no nosso caso Teatro, comprometida com a educação das relações étnico-raciais é indispensável. Por isso, o ensino das Artes é necessário e urgente a uma Educação antirracista, pública, gratuita e de qualidade. O território do Teatro é o Corpo.


A primeira, constante ou não, formação do Coletivo Artístico Saravá se aproxima da conclusão de uma de suas etapas de sua formação docente em Teatro — a graduação. Como águas que somos espera-se que como chuvas reguemos diálogos possíveis entre espaços formais e não formais de Educação em prol de uma pedagogia antirracista do Teatro. Como uma Saravá, pedra testemunha desse processo, confidencio que construímos o entendimento empírico de que os saberes e aprenderes são múltiplos e únicos no encruzilhamentos de múltiplos e únicos sujeitos que não existimos fora de nossos corpos. Fora do corpo não existimos. Que o ensino do Teatro na Educação Básica em Campos dos Goytacazes, sobretudo da Educação Pública, sejam rios. Que nossos cursos se cruzem.

Registro de experiência de formação em performance (Foto: Ana Barbieri/ Acervo do Coletivo Artístico Saravá)

O Coletivo Artístico Saravá inicia suas atividades em 2016, com apoio do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI) - Campos Centro, pelo anseio em discutir sobre as relações étnico-raciais e a busca por referências afro-ameríndias no ensino do Teatro, compartilhado entre a professora Alissan e alguns estudantes da Licenciatura em Teatro. A partir do ano subsequente se articula também como projetos de pesquisa, extensão e cultura, buscando ser espaço-tempo de construção e investigação de saberes e experiências na intersecção entre: performance cultural, performance arte, teatro-educação e relações étnico-raciais, tendo em vista o papel do docente-artista diante das leis 10.639/03, 11.645/08, bem como o art. 26 da LDB. Atualmente o Coletivo conta como integrantes Alissan Maria, coordenadora, docente IFF; Laura Otal, Yan Freitas, Barbara Melo, Laís Lino, Michele Pereira, Guilherme Lisboa — licenciandos em Teatro; Edu Birchler egresso da Licenciatura em Teatro; Maria Clara Montalvão, Cientista Social - UFF e os bolsistas de pesquisa Luiz Chrisóstomo, também licenciando em Teatro, e de cultura, Carlos Patrick licenciando em Geografia.




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