Patrimônio da garotada
- Luiz Neto
- 23 de out. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 23 de abr. de 2021
"Grupo Unsum" tem cursos, produção literária e outras ações culturais para disseminar a educação patrimonial entre o público infanto-juvenil em Campos dos Goytacazes

O ano era 2018. Aos cinco anos, João se encantou com o Ururau Pançudo enquanto passeava pelo campus Campos Centro do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense), durante a 10ª Bienal do Livro de Campos dos Goytacazes. Das páginas ilustradas por Alicio Gomes, o personagem que dá nome à história escrita por Sylvia Paes e Carmen Eugênia Sampaio Gomes saltou para ganhar vida nas mãos do garoto. Essa é uma das formas com que o "Grupo Unsum" dissemina a educação patrimonial na cidade.
"O trabalho é feito pensando nelas (crianças), pois pensamos que temos que plantar essa semente agora para termos adultos equipados conscientemente para agir no território como cidadão pleno. Para ser cidadão pleno, você tem que conhecer e entender do patrimônio cultural que é recebido como herança, e cuidar dele", diz Sylvia Paes.

Unsum é um ideograma adinkra, vindo da África Ocidental. Ele compõe a marca do projeto. "Unsum fala de espiritualidade, de diversidade. Significa o diverso dentro da unidade. Somos humanos e, dentro dessa humanidade, há uma grande diversidade", elucida Carmen Eugênia, que é especialista em cultura afro-brasileira. "Sempre pensamos em trabalhar o grupo como um todo, vendo e atendendo às diversidades. Por isso, fomos buscar um ideograma que tivesse essa ideia de todo", diz Sylvia.
Em sua página no Facebook, o projeto se descreve desta maneira: "Criado em 2008 com a proposta de trabalhar com educação continuada, educação patrimonial e atividades culturais."
"Isso é colocado em prática a partir de contações de história, do que é a gestão do patrimônio local, através de visitas e oficinas com nossos meninos e meninas, palestras formalizada para professores, de como trabalhar a nossa literatura, além do nosso empenho no desenvolvimento de livros que venham ao encontro desse patrimônio cultural local", diz Carmen Eugênia.
Além de ministrarem cursos em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura de Campos, Sylvia e Carmen chegam às escolas e feiras por meio dos sete livros que já publicaram. Seis são da coleção "Tô chegando" e tratam de elementos da cultura regional: "Ururau Pançudo", "Indiozinho Cratscá", "Rainha Ray'a", "Chiquinha Faceira", "O mistério do Jongo" e "Conversa fiada". O outro é "A história do Livro". Todos têm ilustrações de Alicio Gomes.
"As personagens dos nossos livros normalmente saem do padrão eurocêntrico, que é o louro dos olhos azuis. Nós trazemos para o mestiço, para essa representação que temos na sociedade" afirma Carmen.
Recursos próprios
A produção é toda feita com recursos próprios. "A venda de um livro produz o outro", conta Sylvia. Ela estima que de três mil a cinco mil crianças já tiveram contato com as obras de "Unsum". "Nós vendemos para a prefeitura, no primeiro lançamento (em 2014), 200 livros, que deveriam ser distribuídos para as 200 escolas municipais. Com um livro na biblioteca, nós não temos como saber quantas crianças tiveram acesso a ele", diz a professora, que emenda:
"A prefeitura também nos comprou dois mil livros do "Indiozinho" e do "Ururau" para os projetos dos CRAS (Centro de Referência de Assistência Social). Então, entendemos que esses livros chegara às mãos de duas mil crianças. Por ano, devemos vender de 300 a 500 livros. Neste ano, esse número não chegou a 100, por causa da pandemia."

As aquisições públicas em grande quantidade para as escolas públicas nunca ocorreram. "Escolas particulares, por terem mais recursos, adquirem mais o material de nossa coleção. Eu não tenho uma rede pública, do estado ou do município, que tenha tido a ousadia de buscar, fazer uma parceria ou comprar os nossos livros. É claro que há professores de determinados anos de escolaridade que propõem a compra de livro, mas não uma escola", lamenta Carmen.
"Nós vamos gotejando. Indo a escolas, batendo de porta em porta, recebendo muitas portas fechadas, outras até desconfiada de nós, mas conseguimos adentrar alguns recantos interessantes", completa a professora.
Lugares interessantes estes que Sylvia Paes, além de lembrar que algumas escolas estaduais adquiriram exemplares para suas bibliotecas com verba especial para isso, exemplifica: "Houve uma vez em que fomos ao Isepam (Instituto Superior de Educação Professor Aldo Muylaert), que é uma escola estadual, e as crianças fizeram fila para comprar os livros. Teve pai e mãe falando: 'Olha, ele tirou o dinheiro todo do cofrinho dele, da mesada para comprar o livro'".
É importante ter o livro
Mesmo reconhecendo que isso não é possível para todas as crianças, Sylvia destaca a importância da aquisição do livro por cada uma delas. "Há a necessidade de a criança ter o livro em mãos e dizer 'este livro é meu', porque da mesma forma ela vai agir com o patrimônio. Quando ela olhar uma praça como a do Liceu ou São Salvador, ela vai entender que aquela praça é dela, porque é um patrimônio também, como o livro", afirma.
A professora também atenta para a necessidade de os pais incentivarem os filhos a lerem esse material. "Já aconteceu de nós participarmos de feira e termos os displays com os livros na porta da tenda, a criança doida para chegar perto dos livros, e os pais dizerem assim: 'Não vamos aí, só tem livro'. Como se livro fosse um lixo. Aí, nós olhamos e falamos: 'Pode vir aqui, sim. Se ele gosta de ler, o lugar dele é aqui'", diz Sylvia.
Onde chegam os livros de Carmen e Sylvia chegam também as oficinas que elas mesmas promovem para, além de orientar os demais professores sobre o uso das obras, oferecer o contato das crianças com as obras. "As crianças chegam perto de nós e nos beliscam, nos tocam. Elas dizem: 'você é de verdade, eu pensei que você já tivesse morrido'", diz Sylvia.
"Os autores normalmente estão muito longe deles. Eles não veem as pessoas que escrevem os livros, eles leem as histórias, mas não conhecem os seus autores. Quando nós chegamos, e eles sentem que estamos perto deles e que somos iguais a eles, isso é um incentivo enorme para que eles produzam as suas próprias histórias", completa.
O trabalho da dupla não contempla apenas os pequenos. "Quando nós lançamos o primeiro livro, o "Ururau Pançudo", era comum as pessoas adultas chegarem em nosso estande da Bienal e falarem: 'Autografem no meu nome. Eu quero ler primeiro esse livro, pois eu lembro que, quando eu era criança, eu ouvia essa história'. Então, eram adultos que estavam resgatando essa história para si, para depois passarem para os seus filhos, sobrinhos. O público alvo é o infantil, mas acaba atingindo todas as pessoas", conta Sylvia Paes.
A maior parte das oficinas do "Grupo Unsum" são ministradas por Sylvia e Carmen. Elas, porém, terceirizam a encenação em algumas ocasiões. "Nós temos um livro chamado "Chiquinha Faceira", que conta a história da Mana Chica do Caboio. Tem todo um enredo, localização espacial, estamos sempre focadas no território campista. Numa dessas atividades, Neusinha da Hora fez uma encenação. Fizemos a contação de história, a ambientação e, depois, a Neusinha deu a aula de dança da Mana Chica. Foi um escândalo de bonito", conta Carmen.
"Unsum" considera interessante fazer parcerias com universidades para que hajam bolsistas atuando na disseminação de seu trabalho. "Seria uma estratégia interessante. Nosso material já circulou em várias universidades, mas nós nunca fizemos essa parceria", diz Carmen Eugênia, citando a atuação da dupla como pesquisadoras na Officina de Estudos do Patrimônio Cultural da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), via Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq):
"Nós transitamos, por exemplo, na Officina, onde, além de fazermos nossos estudos semanais, também trazemos essa contribuição de como trabalhar com roteiro comentado, como trabalhar com patrimônio a partir das nossas histórias, dos livros que publicamos sobre a história local, e também fazendo as nossas oficinas em escolas públicas, privadas e universidades".
Abrindo caminhos
Dessa maneira, o "Grupo Unsum" propaga e valoriza a história de Campos em seu território, além de abrir caminho para outros escritores fazerem o mesmo. "Na parte acadêmica, universitária, a pesquisa sobre Campos é bem avançada, mas isso circula num plano muito elevado para nossos meninos e meninas. Quando falamos em patrimônio, cultura patrimonial, educação patrimonial, eu e Sylvia vimos a necessidade de produzir conteúdos que fossem atacar essa defasagem na base, que é a educação infantil", diz Carmem, que completa:
"Nesses mais de dez anos, pudemos perceber que conseguimos juntar uma equipe. Depois de minha parceria com Sylvia, vieram outras parcerias no sentido da formação de uma associação, onde nós viemos trazer também outras pessoas que escrevem sobre Campos e que estavam atrás dos armários. Não somos únicas, mas fomos um vetor para a abertura a outras experiências sobre o patrimônio local, principalmente em relação à literatura infanto-juvenil".
Carmen conta que uma das coisa que a motivaram para agir em parceria com Sylvia em "Unsum" foi o incômodo com o fato de o currículo escolar não dar prioridade à história local. "Eu ainda acho que precisaria haver uma revolução didático-pedagógica na produção desse conhecimento para pertencimento. Ninguém é cidadão do mundo se não é cidadão do local onde vive. Tem que reconhecer, conhecer, defender e preservar o patrimônio local, aí você consegue alçar voos mais altos. Dentro desse contexto, nós vemos um total pouco caso", diz a professora.
"Se eu vou dar uma aula sobre Guerra do Paraguai e falo de Voluntários da Pátria, todo mundo acha que é uma coisa que aconteceu no Rio de Janeiro, mas ninguém consegue ver que Campos também forneceu grande quantidade de material humano para esses Voluntários da Pátria, por decreto de Dom Pedro II. É nesse contexto que nós vamos batalhando. É cavada todo santo dia a necessidade desse reconhecimento local das pessoas em relação ao que elas têm, pois 'o patrimônio do outro é bom, e o meu não presta?'. É porque ele não reconhece", completa.
Por enquanto, os livros já publicados são voltados para estudantes do Ensino Fundamental 1, mas Sylvia e Carmen já têm pronto um livro especial sobre a história de campos, destinado ao Ensino Fundamental 2 e ao Ensino Médio. "Ele já está escrito, as pranchas estão prontas. Só falta a logística para o lançamento. Isso será para 2021. O livro é o olhar de Campos sob a perspectiva das árvores centenárias. Haverá também cartografias e jogos", diz Carmen.
Após o lançamento deste livro, que não pertence a uma coleção específica, assim como "A história do livro", o "Grupo Unsum" lançará a coleção "Já cheguei", voltada a estudantes dos ensinos Fundamental 2 e Médio.
Caminhando juntas
Sylvia e Carmen têm trajetórias profissionais que sempre se encontraram. Em comum, são historiadoras formadas pela Faculdade de Filosofia de Campos (Fafic), que atualmente se chama Centro Universitário Fluminense (Uniflu) e mestras em Planejamento Regional e Gestão de Cidades pela Universidade Cândido Mendes (Ucam).
Atualmente, além de participarem da Officina, são integrantes da Academia Campista de Letras (ACL), do Instituto Histórico e Geográfico de Campos dos Goytacazes (IHGCH) e da Associação de Autoras e Autores Campistas (AAAC).
No magistério, Sylvia, hoje aposentada, atuou na rede municipal de ensino de Campos, na Universidade Salgado de Oliveira (Universo) e da Uniflu. Ainda na ativa, Carmen Eugênia leciona nas redes municipal, estadual e particular, além de ser docente na Uniflu. Apesar dessa trajetória, Sylvia encontra um fator especial para o trabalho delas: "Somos avós de crianças maravilhosas, o que talvez seja a nossa faceta mais importante", diz.
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