As muitas CasaDuna
- Culturália
- 14 de ago. de 2020
- 6 min de leitura
Atualizado: 23 de abr. de 2021
Com residência de arte, grupo de teatro, acervo, exposições, vídeos e trabalhos acadêmicos, CasaDuna atua em paisagem constantemente mudada pela erosão

*Por Luiz Neto e Raimundo Helio Lopes
Atafona é um lugar em que a transformação é visível. E foi justamente neste distrito de São João da Barra, onde a erosão causada pelo mar imprime novas paisagens há pelo menos meio século, que em maio de 2017 se instalou a CasaDuna. Como o nome sugere, essa habitação — idealizada por Julia Naidin e Fernando Codeço — tem vários cômodos em constante mudança. Nela convivem centro de arte, pesquisa e memória local que acontecem em diversas frentes: residência de arte, grupo de teatro Erosão, pesquisa de acervo, produção de exposições e vídeos, além de trabalho acadêmico. A CasaDuna narra a história e a realidade local de modo alternativo e diverso.
"O que nós percebemos aqui é a grande dificuldade que se dá para viabilizar as ações. Na verdade, nós conseguimos nos viabilizar aqui graças a programas de pós-graduação que eu e Fernando participávamos. Nós revertíamos esse dinheiro das pesquisas em um custo de vida menor do que temos nas grandes cidades, e contávamos com muito trabalho colaborativo também. Quando você não está com uma grande instituição, vai ter que ter negociações financeiras que vão ter de operar com outros custos, outros ganhos, outros acordos”, diz Julia.
A dificuldade, no entanto, leva a oportunidades, fazendo valer um velho ditado: “Se eu não estou vinculada a uma grande produtora, ou alguma empresa que me patrocina, eu tenho mais liberdade de contar outras histórias, de apresentar outros conteúdos. Talvez eu tenha mais liberdade para questionar um modelo de produção ou algum conteúdo de alguma produção”, complementa Naidin.
Fernando nasceu em São Paulo, mas viveu a adolescência em Campos, de onde é sua família. Como todo campista, mesmo aqueles não são de nascimento, passou alguns verões em Grussaí, na casa do avô. Julia, que é do Rio, conheceu a região através de Codeço e se envolveu com o lugar. Assim, o casal deixou a Cidade Maravilhosa, onde Fernando viveu por 15 anos, para dar início ao projeto.

"Atafona nos chamou porque tem um fenômeno muito intenso, que nos faz pensar em milhões de coisas. É um lugar muito interessante para se pensar coisas. Imaginamos que uma residência de arte seria uma forma de criar encontros, um ambiente onde poderíamos favorecer encontros de pessoas, de ideias para trazer uma expressão que pudesse alimentar a reflexão sobre Atafona não só do ponto de vista da ciência, ou do ponto de vista das soluções que os cientistas sociais poderiam dar, que os ambientalistas ou engenheiros poderiam dar. Pensamos também que existe um campo estético do pensamento que pode trazer mudanças fundamentais para que possamos criar uma efetividade no sentido da mudança. Para nós, a questão ambiental não é tanto de discurso, mas de prática. Para mudar as práticas, você precisa mudar coisas mais sutis, do imaginário, da percepção das coisas. E a arte tem capacidade de mexer nesse lugar", conta Codeço.
A exposição 'Atafona - museu em processo' foi a porta de entrada da CasaDuna. A mostra, iniciada em outubro de 2017, expôs imagens do distrito sanjoanense vindas do acervo que Julia e Fernando adquiriram de Jair Vieira, artista plástico e poeta, morador antigo do local. "A exposição teve esse papel de conseguirmos criar esse imaginário de museu, que poderia ser um museu de Atafona. Nós não tínhamos a intenção de dizer que estávamos criando o museu de Atafona. Chamamos museu em processo porque é mais uma provocação, uma chamada para imaginarmos que poderia ser esse museu. Foi fundamental o encontro desse acervo do Jair Vieira, pois ele queria se desfazer dele e nós tivemos condições de comprar. Esse acervo tem uma representatividade na paisagem que o mar já levou. Ele tem fotos bastante representativas dessa paisagem, é muito importante para várias esferas da comunidade, tanto para a vila de pescadores, quanto para os veranistas, que são na sua maioria campistas", diz Fernando.
Após um ano de existência, a CasaDuna teve de mudar de sede. Saiu da Rua Julio Souza Vale Junior e foi para a Felicíssimo Alves. "A primeira casa é enorme e tem uma história importante na região, porque foi de um importante usineiro de Campos. Uma duna fez o muro dessa casa cair. Isso foi muito forte para nós. Pensamos que era poeticamente muito forte, simbolicamente muito forte para o tipo de trabalho que estamos fazendo, que passa também por fazer revisões da própria história do Brasil e da Região. Revisões no sentido de como nós contamos nossa própria história. Optamos naquele momento por funcionar naquele espaço e, em função desse espaço, criar atividades que imaginamos que pudessem criar um fluxo de renda, pelo menos na época do verão. Isso se mostrou inviável, por questões de trâmites burocráticos, como aval para tipos de financiamento. Optamos, então, por mudar de casa", explica Julia Naidin, que relaciona a mudança com a dificuldade de parte da população em frequentar o primeiro espaço, apesar da gratuidade das ações.

Ela emenda: "Quando percebemos que seria inviável ficar naquela casa, e percebemos a dificuldade de os moradores acessarem aquela casa, imaginamos que seria mais interessante ir para um espaço menor, menos oneroso e focar as nossas ações em praças públicas ou em espaços que já existem, em São João da Barra, para não fazer as ações dentro de casa. A ideia é ir de fato onde estão as pessoas e não fazê-las virem até nós. Ainda funcionamos como residência de arte, recebemos os artistas, ainda trabalhamos com grupo de teatro, mas as ações são sempre em espaços públicos — na rua ou em espaços culturais da prefeitura".
Rompendo paredes, literal e metaforicamente, e ganhando outros espaços, para além da residência menor que passou a habitar, a CasaDuna levou o cortejo teatral 'Tempontal', do grupo Erosão, para as ruas de São João da Barra, fez curadoria para intervenção artística na beira do mar e, através de Fernando Codeço, realizou a instalação 'Maremória' na exposição 'Erosões Visuais', na Casa de Cultura Villa Maria, em Campos. Com isso, o diálogo com a população regional aumentou.
"Compreendemos que as pessoas querem o melhor para a vida delas, mas há uma espécie de restrição no olhar. Às vezes, o olhar é mais distante, como o professor Aristides Soffiati tem nos ensinado há tanto tempo sobre história natural, por exemplo, de nós podermos repensar as coisas num significado um pouco maior, para entender que a natureza não é uma coisa totalmente estática. Essa dimensão de Atafona, de que esse modelo que a nossa sociedade implantou enquanto gestão de recursos, de transformar a natureza num grande reservatório de recursos do qual eu posso simplesmente usufruir e não cuidar, isso tudo tem consequência. E as consequências estamos começando a ver aí", diz Fernando.
No ano passado, a CasaDuna, como se tivesse ganhado pernas ou asas, viajou pelo mundo. Julia e Fernando apresentaram-na em países europeus, como França e Alemanha, devido a uma bolsa de estudos conquistada por Fernando.

Atualmente, em cenário de pandemia, como não é diferente para todos e todas que vivem de experienciar a realidade por meio das artes e da cultura, as estruturas trepidaram. E a natureza de Atafona continua transformando suas paisagens. "Aqui o território é todo vulnerável. É difícil termos uma perspectiva de longo prazo na região. Aquele espaço na época estava com uma duna dentro. A prefeitura chegou a retirar essa duna. Uma vez por ano a prefeitura empurra essa areia, mas aqui as ações são todas no nível paliativo. Pegando os estudos atuais de aquecimento global e as previsões dos ecologistas, notamos que essas previsões são muito pessimistas. Como não vemos uma transformação efetiva, que partiriam de políticas internacionais, no modo como produzimos energia e destruímos o meio ambiente, intensificamos a agressão ao meio ambiente, temos uma perspectiva complicada pela frente, segundo as previsões dos especialistas em aquecimento global e dos problemas do Planeta Terra", afirma Julia.
Mas, como habitar é mais modo e jeito do que ficar em um lugar, a CasaDuna vai se reinventando e se mantendo. No Instagram do projeto, tem ocorrido lives semanais em que se discutem principalmente o cenário cultural local. Nesta sexta-feira, 14 de agosto de 2020, às 19h, o papo será com o diretor teatral João Bernardo Caldeira, do Coletivo Cosmogônico. Ideia é o que não falta para quando tudo voltar ao normal. O retorno do cineclube que existia na primeira sede é um sonho. Se as certezas estão frágeis, a criatividade, o grande pilar dessa casa que é muitas, sustenta a esperança de novas reinvenções.
Qual a localização deste acervo de fotos?
No texto vi citar apenas o nome da rua, podem dar mais detalhes? Preciso visitar!!!
Se ainda existe, falta divulgação.
ACERTADÍSSIMO ESTE DIZER: "como habitar é mais modo e jeito do que ficar em um lugar, a CasaDuna" me tocou de forma essencial. Quero aprender a fazer. Valeu!!!